“Cidade Invisível” e as brasilidades em inglês: quando a melhor tradução é não traduzir

No primeiro artigo do ano, Guilherme Gama, gerente de projetos da LBM, já nos brinda com polêmicas tradutórias #gostamosassim

O tradutor principal de Cidade Invisível para o inglês compartilha com os leitores da Toca do Mouse coisas que queremos saber sobre esse processo (mas não necessariamente gostamos de ouvir)!

Vamos lá?

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Em 5 de fevereiro deste ano, estreou a primeira temporada de “Cidade Invisível”, original Netflix que acompanha a trajetória de um agente da polícia ambiental do Rio de Janeiro num enredo cheio de mistérios e beirando o metafísico, envolvendo personagens do folclore brasileiro – queridos para nós, razoavelmente desconhecidos lá fora. E sempre que tratamos desse tipo de material, ouvimos uma pergunta muito frequente: como vocês traduziram X, Y, Z?

“Alô, LBM? É river dolphin ou pink river dolphin?”

A resposta, um tanto anticlimática, é quase sempre que… não traduzimos.

Convido você a uma reflexão: como se diz “pão de queijo” em inglês? “Coxinha”? “Samba-enredo”? São perguntas que surgem frequentemente entre brasileiros que têm contato com o pessoal de fora. Eu mesmo fui professor de inglês por quase 10 anos e tive que responder perguntas desse tipo. Algumas vezes sugeria soluções (meio desajeitadas, até), quando via que a pergunta vinha de uma necessidade genuína de comunicação. Afinal, por que não chamar de cheese bread se é um conceito que vai ser imediatamente entendido pelo interlocutor? Dá na mesma, não dá?

Depende. Anos atrás, eu teria adotado cheese bread sem nem pensar duas vezes, porque minhas responsabilidades eram outras. Minha missão era facilitar a comunicação entre dois ou mais indivíduos. Agora, minha responsabilidade – a nossa responsabilidade, aliás, como empresa – é de facilitar a comunicação de um material. Claro, facilitar às vezes pede adaptações, mas isso deve ser dosado. Quanto adaptar e quanto manter a fidelidade ao original? Onde fica esse limite? Essas são perguntas inerentes ao trabalho de tradução.

Aliás, a Little Brown Mouse nem sempre trabalhou com legendagem em inglês de material brasileiro. Boa parte da nossa história de 40 anos girou quase exclusivamente em torno de legendar para o mercado doméstico filmes que vinham de fora. Exceções a essa regra foram pipocando, a mais notável delas o longa “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muylaert. Mas de uns cinco anos para cá, talvez menos, esse quadro mudou bastante. Quase da noite para o dia, tivemos um grande influxo de material tupiniquim para consumo externo: longas, séries, documentários, vídeos para redes sociais – sem contar material escrito, como roteiros, argumentos e bíblias de séries.

Independentemente do gênero, a esmagadora maioria desse material é sobre o Brasil. Sobre brasileiros em suas realidades brasileiras, tangendo a cultura brasileira por todas as perspectivas imagináveis. E traduzir o Brasil para o mundo externo é para nós motivo de muito orgulho. Mas, para fazer uma paráfrase equivocada daquela frase batida de “Homem-Aranha”, com grande orgulho vem grande responsabilidade.

(sim, eu sei que esse post é sobre “Cidade Invisível”. Já chego lá)

Inevitavelmente, quem traduz uma obra brasileira para estrangeiros está se colocando como vetor de acesso a esse material. Muitas vezes, a legenda é o único meio pelo qual uma pessoa não lusófona sequer conseguiria desfrutar daquela produção. Nossa primeira preocupação, portanto, é com essa pessoa que vai assistir. O que interessa a ela?

Esse famoso desastre teria sido evitado pelo Teste do Pão de Queijo.

Aí voltamos à questão do pão de queijo. Cheese bread vai ser entendido? Claro que vai. “Pão de queijo”, com esse rabisco esquisito em cima do “a”, não vai causar estranhamento? Talvez. Mas pensa um pouco: se a pessoa já parou o que estava fazendo para assistir a uma produção brasileira, será que usar o termo em português realmente vai ser um empecilho? Ou poderia ser um convite para ela ir buscar a informação na fonte e no idioma original?

Novamente, não existe resposta fácil, mas ao longo do tempo fomos desenvolvendo maneiras de tornar essa decisão mais consistente. Nosso processo pode ser resumido a duas perguntas de sim ou não. Não quero ser egocêntrico e batizar de Regras do Gama, então doravante vos apresento o Teste do Pão de Queijo:

  1. É importante para a obra que façamos referência especificamente a um pão de queijo?
  2. Existe um termo equivalente, razoavelmente conhecido em inglês, que vai remeter a um pão de queijo com uma margem razoavelmente baixa para ambiguidade?

A primeira pergunta é importante porque, por exemplo, podemos ter alusões figurativas como “ah, tá redondo igual um pão de queijo”. Se não for importante para a história que a pessoa se refira especificamente a um pão de queijo, podemos adaptar com alguma outra figura de linguagem.

Já se a resposta à segunda pergunta for “sim”, usamos então o termo estrangeiro. Senão, não. Aliás, muitas vezes nem consideramos o termo em português como palavra não inglesa! Por exemplo, “jaboticaba” aparece com essa grafia no dicionário Merriam-Webster e, portanto, consideramos como palavra da língua inglesa e vai na legenda sem itálicos. Já “doce de leite”, por exemplo, é vendido lá fora como dulce de leche por influência dos nossos vizinhos, e, portanto, atende à pergunta 2 do teste (sim, sim, eu sei que doce de leite uruguaio é muito diferente do nosso, mas tudo tem limite também, né?). Outra influência dos hermanos entra na nossa decisão de verter “novela” como telenovela e não soap opera, mas o motivo para isso é assunto para outro post.

Häagen-Dazs promovendo a Regra Número 2 pelo mundo.

Enfim chegamos ao “Cidade Invisível”. Traduzimos alguns termos? Algumas coisas sim. “Fubá” é corn flour ou raw corn flour, dependendo do contexto. Atende ao quesito 2 do Teste do Pão de Queijo.

Já os animais exigiram um cuidado especial. Por exemplo, o cetáceo de água doce que conhecemos como “boto” tem nome comum (e pouco criativo) em inglês: river dolphin ou pink river dolphin. Adotamos isso, fazendo questão, sempre que possível, de evitar abreviar como “dolphin” como jeito barato de economizar caracteres na legenda. Porco-do-mato? Peccary. É um termo razoavelmente conhecido e mais específico do que hog, que se refere ao porco mesmo, sem o “-do-mato”. Jacaré, por outro lado, é algo mais delicado. O termo certinho, certinho mesmo é caiman. O parentesco entre um caiman e um alligator, inclusive, é mais distante do que aquele entre o porco e o porco-do-mato. Mas esbarramos no quesito 1: um jacaré é mencionado apenas numa vez nessa temporada (spoilers!), citado de passagem e como parte de uma lista de animais que também inclui um macaco-prego (capuchin monkey). Ficamos – desta vez – com o bom e velho alligator.

E finalmente, as estrelas principais da noite, nossas figuras mitológicas. Com exceção do já citado boto cor-de-rosa, não traduzimos N-A-D-A. Cuca é Cuca, Curupira é Curupira, Saci é Saci. E feliz de quem conhecê-los por essa sensacional produção da Prodigo Filmes. Aqui na LBM somos fãs e aguardamos ansiosamente as próximas temporadas.

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Quer saber de que outros projetos originais Netflix já participamos? Dê uma olhada no nosso portfólio!

O controle de qualidade na legendagem

Caríssmos e caríssimas,

Nesta quinta-feira ensolarada, trazemos um tópico que levamos muito a sério aqui na LBM: o controle de qualidade, vulgo CQ. Aquele que não é uma revisão, mas também não é menos importante do que ela. Aquele que amarra o texto e dá consistência, deixa com cara de coisa bem feita. Mas onde vive e de que se alimenta o CQ?

Nossa meticulosa profissional de controle de qualidade, Paula Barreto, une seu amor por CQ ao seu amor por Bernardinho para descrever a saga da padronização (saiba mais sobre a nossa equipe!).

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Você já parou para pensar em todos os processos pelo qual a legenda de um conteúdo passa antes de ser exibida? Se sim, você provavelmente pensou nos processos de tradução e revisão, talvez de leitura. Mas, na maioria dos casos, existe um outro processo bastante importante, ainda que não seja muito discutido e que poucas pessoas tenham consciência da sua existência: o controle de qualidade.

Então comecemos pelo básico: o que é o controle de qualidade? Onde ele se encaixa no processo de legendagem? Como é feito? Hoje, no Globo Repórter. Como muitas coisas no universo da tradução audiovisual, esse processo pode variar muito dependendo da empresa e do cliente, então não existem regras definitivas nem uma maneira correta de se fazer o CQ. Cada empresa pode abordar esse processo de maneira diferente, e nem todas incluem o controle de qualidade em seu fluxo de trabalho. Como trabalhei desde 2012 com controle de qualidade em produtoras que atendem principalmente aos grandes canais e serviços de TV, a perspectiva que vou oferecer aqui é de como essas empresas lidam com esse processo.

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Bom, o controle de qualidade nada mais é que uma etapa final depois do arquivo de legendas já ter passado pelo tradutor e revisor e, às vezes, pela leitura. Esse processo pode ser considerado como um pente-fino do arquivo, uma última revisão antes da legenda ser entregue ao cliente. “Mas para que fazer uma segunda revisão?”, você pode se perguntar. Afinal, se depois que a tradução foi feita o arquivo já passou pelas mãos de um revisor, qual é a importância desse processo final? Teoricamente, o controle de qualidade serve mais ao propósito de adequar o arquivo aos padrões do cliente – padrões esses que tradutores e revisores nem sempre estão por dentro. Normalmente quem faz o controle de qualidade são estagiários e funcionários que, diferentemente do tradutor, revisor e leitor, trabalham dentro da empresa. Isso significa que esses profissionais têm um entendimento maior sobre os  padrões e gostos do cliente, já que além de estarem dentro da empresa e ver como as coisas funcionam, eles também recebem e-mails com feedback, correções, preferências, manuais atualizados e afins. Sem mencionar que podem sempre contar com profissionais capazes dentro da empresa para tirar dúvidas, discutir opções de tradução e até enviar e-mails ao cliente para esclarecer o que quer que seja. Dessa forma, as pessoas que trabalham com o controle de qualidade entendem melhor sobre os padrões e preferências do cliente, e assim essa etapa se faz necessária para entregar um arquivo de alta qualidade.

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O trabalho do setor do controle de qualidade envolve também avaliar se um arquivo está todo dentro das diretrizes do cliente. Isso pode envolver muitas coisas: preferências linguísticas, dos and don’ts, inclusão do título ou não, tradução de artes/cartelas ou não, tradução de músicas ou não etc. Além disso, é responsabilidade do CQ tratar de aspectos mais técnicos, como cor da fonte, mudança de cor para legendas de cartela ou arte, arquivo de pós-produção, código de deslocamento da legenda, inserção de tarja, como prosseguir quando há legendas queimadas no vídeo, pausa correta entre as legendas e afins. Esse trabalho mais técnico geralmente não é feito pelo tradutor nem revisor, sendo responsabilidade apenas dos profissionais que trabalham no controle de qualidade. Então, além dessa parte obrigatória e mais técnica, o CQ serve também, como dito antes, para fazer uma segunda e última revisão do arquivo, ou seja, deixá-lo o melhor possível para a entrega final para o cliente. Dessa forma, o trabalho do controle de qualidade conserta erros que ainda passaram pelo revisor e muitas vezes melhora a qualidade do texto.

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Esse processo pode não estar presente em todas as empresas e fluxos de trabalho, mas sua importância não deve deixar de ser notada. É uma etapa a mais que garante uma melhor qualidade do serviço, o que, no fim das contas, pode fazer toda a diferença na relação entre o cliente e a empresa. Por essas razões, além do fato de eu ter trabalhado muito tempo com isso e realmente gostado do trabalho, eu digo:

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O ratinho dá sua bênção: padronizai-vos.

Gostou? Descubra mais sobre os nossos serviços!

Restrições na TAV: aceita que dói menos!

Nesta quinta, o blog traz um guest post do nosso amigo e colega Paulo Noriega, autor do blog “Traduzindo a Dublagem“. O tema que ele escolheu abordar é bem pertinente: como lidar com as restrições que encontramos na TAV, que nos impedem de incluir na nossa tradução todo o conteúdo que gostaríamos? Pesquisas indicam que clientes também precisam ler este texto!

Segue 🙂

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Primeiramente, muito obrigado à Ligia (e ao ratinho, claro!) pelo convite e a oportunidade de escrever para o blog da LBM que, há anos, faz um trabalho de excelência no campo da legendagem e agora está se aventurando nas águas da acessibilidade com uma equipe incrivelmente competente e composta por amigos queridos.

Pensando sobre o que eu poderia escrever, resolvi aproveitar este espaço e expor um pouco os meus pensamentos acerca de um assunto que não só aparece com frequência nas conversas ao se falar de dublagem e legendagem, como também é algo que os profissionais que visem atuar nessas áreas precisam ter em mente: a tal da restrição.

Espera, que tipo de restrição?

Calma que eu chego lá! Antes vamos pensar em uma das modalidades tradutórias mais antigas: a literária. Com o surgimento de tantas editoras pelo mundo ao longo das décadas, e com a chegada de tantas traduções às livrarias mensalmente, pare para pensar nos livros que você já leu. Quantos tinham notas de rodapé, prefácios, posfácios ou até mesmo notas do tradutor? Muitos podem não ter tudo que listei, mas a questão é que todos são recursos possíveis de serem utilizados em uma tradução literária.

Entretanto, se migrarmos para o campo de TAV (tradução audiovisual), a coisa já muda de figura, né? Afinal, nenhum dos recursos que citei acima pode se aplicar às modalidades de TAV, como a dublagem e a legendagem, foco deste post. Como todos que já viram qualquer obra audiovisual, seja dublada ou legendada, a veiculação da mensagem presente nas produções é imediata. Pescou, pescou. Não pescou, não pesca mais. Não vai aparecer um asterisco com uma nota na parte inferior da tela explicando a adaptação de uma piada ou de um trocadilho. Não há nada que sirva de suporte para justificar as soluções tradutórias, o que há é apenas a imagem e a palavra, escrita ou falada, se retroalimentando a todo instante.

#cerverórepresenta

Entendido isso, chegamos à tal da restrição. Diferentemente do livro em que não há uma limitação para se transmitir a mensagem do original, tanto a dublagem quanto a legendagem compartilham desta característica inerente, mas, obviamente, são  limitações de naturezas diferentes. Enquanto que na legendagem existem os softwares que “apitam” e indicam quando uma legenda ultrapassou o número permitido de caracteres, na dublagem, o buraco é um pouco mais embaixo. Isso porque nela o que dita quais informações conseguirão ser veiculadas na nossa língua é a boca dos personagens, um fator subjetivo e que costuma levar um certo tempo até o tradutor desse segmento conseguir dominar. Em outras palavras, ser capaz de fazer a informação do original “caber” na boca dos personagens, como costumamos falar na área.

Além do caráter restritivo de ambos os campos, ainda há um agravante: diversos estudos linguísticos mostram que as palavras não só da língua portuguesa, como das demais línguas neolatinas, a exemplo do espanhol, do italiano e do francês são, por excelência, maiores do que as da língua inglesa, idioma de partida predominante no mercado de TAV brasileiro. Levando tudo isso em consideração, como é possível, não só o telespectador como nós mesmos, tradutores dessas áreas, exigirmos que o conteúdo presente em cada fala nas produções seja repassado integralmente para o nosso português brasileiro? É justo que acusem a dublagem e a legendagem de modalidades infiéis de tradução, sendo que existem esses fatores que vão infinitamente além e transcendem qualquer profissional que atue nesses campos? Deixo essa reflexão no ar…

“Mas Paulo, aonde você quer chegar com toda essa história de restrição e o escambau?” Calma que eu chego lá também! Eu me lembro de que quando fiz um curso de tradução para legendas lááá em 2012, sendo que já havia feito um de tradução para dublagem dois anos antes, eu sentia uma agonia constante por ter que condensar TANTO a tradução ao fazer os exercícios. Quando a professora do curso de legendagem nos passou um exercício da série House, às vezes, só com o nome da doença, metade do espaço da legenda já ia embora! DESESPERO TOTAL!

Na minha cabeça, a legendagem conseguia ser mais restritiva do que sua modalidade irmã, porém, ao longo do meu tempo de carreira como tradutor especializado no campo de dublagem, vi que, na verdade, ambas sofrem da mesma forma. Eu mesmo já lidei com várias produções em que eu me sentia produzindo “falas de legenda”, como minha amiga tradutora, Dilma Machado, gosta de falar. Já houve casos em que eu tive de enxugar tanto a fala de certos personagens, que era como se eu estivesse legendando.

Rick fazendo apologia ao consumo de filmes dublados?

Acredito que a quantidade de informações que conseguirá ser passada na tradução de ambos os segmentos depende de diversos fatores como o ritmo de fala dos personagens, o número de referências culturais, a quantidade de piadinhas, trocadilhos e piadas, enfim… costumo dizer que há produtos que “colaboram” mais com o tradutor e outros menos, por assim dizer. É vital entender que cada produção sempre terá suas particularidades e, por mais que a produção original “colabore” com personagens falando mais devagar ou não tendo tanto conteúdo que exija um nível maior de adaptação, haverá algumas coisinhas que sempre ficarão de fora, não tem jeito.

Saber filtrar informações é uma das principais qualidades que um tradutor audiovisual precisa ter. Através de muito estudo e muita prática, ele terá que analisar a todo instante quais são as informações do original que não podem deixar de estar presentes em seu ato tradutório.  É um filtro subjetivo? De certa forma, sim. Às vezes o que é crucial para mim, pode não ser tanto para outro colega. No entanto, há casos em que fica muito evidente o que deve ou não ser transmitido, mas como diz o sábio ditado: “a prática leva à perfeição.”

Por fim, ao entendermos a existência desse caráter restritivo, mas sem escapatória, da nossa querida TAV, qual é a dica que posso deixar para que não só os tradutores para dublagem e legendagem já atuantes, como também os aspirantes, possam realizar seu trabalho sem culpa? A saída, meu caro leitor do blog do ratinho, é mais simples do que parece: SE LIBERTA! Se liberta das amarras de querer veicular e transmitir o conteúdo integral das produções estrangeiras, pois, como já disse, é impossível.

Junte-se à seita de tradutores de TAV mais feliz do planeta.

Enquanto esse conflito interno existir (e acredite, ele existiu dentro de mim durante um certo tempo), isso pode atrapalhar seu trabalho e, muitas vezes, te levar a momentos de frustração. Falando em bom português, o melhor é “aceitar que dói menos”. Abrace a restrição existente nessas duas modalidades irmãs e esforce-se para identificar aquilo que é essencial, de modo que os nossos telespectadores possam se aproximar ao máximo da experiência dos telespectadores da língua de partida. Dessa forma, eu, você e todos nós poderemos continuar a desfrutar de tantas produções audiovisuais maravilhosas que não param de chegar, sejam legendadas ou dubladas. 😉

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Paulo Noriega é tradutor do par de idiomas inglês-português especializado no campo de tradução para dublagem. É Bacharel e Especialista em tradução pela PUC-Rio. Presta serviços de tradução para dublagem dos mais diversos gêneros e traduziu mais de 250 horas de produções audiovisuais. É palestrante e autor do blog “Traduzindo a dublagem“, um dos primeiros blogs brasileiros inteiramente dedicado à tradução para dublagem.

Cinema para tradutores de AV: Os elementos cinematográficos

Car@ tradutor@,

Se você é tradutor de AV, com certeza já interagiu com alguém que babou no seu ofício: “Nossa, que trabalho maneiro!”. Verdade que encontramos dificuldades e percalços pelo caminho, mas nossa profissão é de fato muito maneira. O principal motivo pelo qual se demonstra tanto interesse e admiração pelo que fazemos é que manipulamos muitos materiais audiovisuais. “Você trabalha assistindo a vários filmes e séries!”. Mais uma vez, verdade seja dita, muitas vezes legendamos materiais que não causariam muita inveja na galera, mas trabalho é trabalho e nem tudo são flores.

Mas pendendo para o lado realmente interessante, que é assistir a muitos filmes e séries, você já parou para se perguntar, como tradutor de AV, o quanto você entende de cinema e o quanto o seu conhecimento da área influi no seu trabalho? Ou mesmo como curioso, já pensou em como o seu entendimento dos elementos cinematográficos te ajuda a entender uma produção audiovisual e se relacionar com ela? Interessar-se por cinema é o pré-requisito mais importante para ser tradutor audiovisual, mas se considerarmos a TAV uma etapa da pós-produção do filme, o que ela de fato é, entender de cinema se torna condição sine qua non para atingir um nível de qualidade elevado na tradução.

Pensando nisso, resolvemos trazer para você uma série de posts que vai ajudar a todos a entender mais sobre cinema e transportar isso para os nossos trabalhos com TAV e nossas vidas de espectador também. Em colaboração com o editor e finalizador da m.art.ucci Ivan M. Franco, trazemos nesta quinta a primeira edição da série. Vamos lá?

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Quando imaginamos um diálogo qualquer entre duas pessoas, utilizamos artifícios comuns e já estruturados nas formas narrativas conhecidas: podemos imaginar esse diálogo escrito como em romances, separado por travessões entre cada personagem; talvez com balões mostrando quem diz cada fala num quadrinho. Em um filme, provavelmente nós faríamos como um diretor: as pessoas envolvidas não ficam completamente de frente uma para a outra, mas um tanto perpendicular, para que a câmera possa enquadrá-las e captar um número maior de gestos e expressões.

No cinema, essa maneira de apresentar um diálogo já é considerada como clássica, o enquadramento comumente usado para situar pessoas e diálogos em um determinado ambiente de forma eficiente. Após estabelecer a posição das personagens dentro daquele local, podemos trocar os pontos de vista e acrescentar novos elementos e camadas ao diálogo.  Isso pode ser feito de inúmeras maneiras: um enquadramento baixo virado para cima pode causar a impressão de superioridade de uma personagem sobre a outra; um enquadramento muito fechado nos olhos pode demonstrar surpresa (ou basta contratar o Marlon Teixeira); algumas perspectivas podem ser completamente subjetivas, através do uso de pontos de vista peculiares, seja de animais ou até de objetos inanimados. Tudo isso ainda é considerado clássico.

Quem quiser ter acesso ao precioso material completo de expressões faciais, pode acessar a matéria do BuzzFeed em https://www.buzzfeed.com/raphaelevangelista/e-impossivel-ficar-indiferente-as-sete-caras-do-cinema?utm_term=.ctvzxgeG6#.gn5VDJna7
Expressão de surpresa by Marlon Teixeira. Quem quiser ter acesso ao precioso material completo de expressões faciais, pode acessar a matéria do BuzzFeed aqui.

Esses recursos narrativos vêm de um planejamento anterior e passam, de maneira resumida, pelo roteiro, direção de fotografia, direção de atores e edição. Mas resumir dessa forma é desconsiderar cada outro elemento que acompanha uma narrativa audiovisual: deixamos de citar as cores usadas, caso sejam usadas cores; a produção de arte e todo seu figurino ficam negligenciados; o próprio trabalho dos atores fica em segundo plano.  Queremos dizer que cada profissional ou artista responsável por algum elemento da narrativa precisa considerar os outros elementos para que a obra possa expressar ao máximo o que o autor pretende. Se por alguma razão o filme for preto e branco, não fará muito sentido o diretor de arte trabalhar com milhares de cores diferentes. O cinema é uma arte feita por muitos autores, por mais que seja idealizada por apenas uma pessoa.

Ao chegar à tradução audiovisual, é a nossa vez de considerar o máximo de elementos em cena para fazer o nosso trabalho. Apenas escutar a fala e olhar brevemente para a cena, desconsiderando as sutilezas que marcam aquele momento pode, em menor escala, tirar da beleza que um diálogo traduzido com sensibilidade cinematográfica poderia adicionar à cena; ou, em maior escala, causar discrepâncias e tornar grosseira a TAV. Dar atenção ao enquadramento permite que as falas traduzidas acompanhem a intensidade desejada pela cena. De forma semelhante, a luz e cor apresentadas pela produção dizem muito sobre o que se quer comunicar ao espectador, bem como as palavras escolhidas na tradução. Assim, se luz e iluminação são relevantes para o filme, devem ser para a tradução também.

O filme vencedor do Oscar deste ano “Moonlight – Sob a Luz do Luar”, legendado pela LBM, dá vida à dura vivência do protagonista Chiron, menino negro, pobre, mãe dependente química, que se descobre homossexual, acaba espancado, vai preso e se torna traficante de drogas. Diante dessa sinopse, o tradutor poderia facilmente adotar uma linguagem igualmente dura todo o tempo, que refletisse a realidade ali ilustrada. As cores do filme, no entanto, vêm nos dizer o oposto: ao dividir o filme em três capítulos, cada qual com um tratamento de cor diferente, a produção se afasta de um registro realista e documental para criar uma atmosfera onírica, em que o espectador não só é testemunha dos duros eventos vividos por Chiron, mas também pode mergulhar na sua vida emocional.

Em outubro do ano passado, o IndieWire publicou um artigo extremamente detalhado sobre esse aspecto do filme, com imagens inéditas que comparavam cenas do filme extraídas diretamente da câmera e suas versões pós tratamento (leia o texto em inglês na íntegra aqui). Na imagem abaixo do ator Mahershala Ali, vemos que a alta saturação deixa o visual muito mais quente, trazendo mais textura ao tom de pele. Não coincidentemente, o primeiro capítulo do filme traz diálogos de reflexão sobre a cor de pele negra dos personagens e considerações sobre a luz do luar cubano, contrastando com a paisagem californiana. Confirmando essas relações, o colorista do filme Alex Bickel disse que “foi seu trabalho desenvolver paletas que proporcionassem o impacto emocional desejado pelos criadores do filme”.

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E o impossível aconteceu: não é que conseguiram melhorar a cara do Mahershala Ali?

O diálogo entre a TAV e esse movimento estético, trazido pelos elementos cinematográficos da luz e do tratamento de cor, se dá numa trama muito delicada de legendas que mistura registros formais e informais, gírias e linguagem poética, expressando ao mesmo tempo profundidade e sensibilidade, num contexto em que seria difícil de desvincular o conteúdo do filme a visões clichês de questões sociais sem a ajuda dessa tensão visual. Um filme como “Moonlight”, preenchido de silêncios brilhantes e às vezes até devastadores, determina esse cuidado com as legendas para que a experiência proposta pela obra não fique prejudicada. O resultado é uma narrativa que nunca viola a nossa suspensão da descrença e permite que todas as suas camadas sejam absorvidas e contempladas pelo espectador. O diálogo perfeito entre artistas e público.

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Ivan M. Franco é formado em cinema pelo curso de Imagem e Som da UFSCar, especializado em roteiro e direção, trabalhando há mais de 10 anos com montagem e finalização de obras audiovisuais. Também se dedica a experimentações artísticas com fotografia, vídeo e música.