Cinema para tradutores de AV: Os elementos cinematográficos

Car@ tradutor@,

Se você é tradutor de AV, com certeza já interagiu com alguém que babou no seu ofício: “Nossa, que trabalho maneiro!”. Verdade que encontramos dificuldades e percalços pelo caminho, mas nossa profissão é de fato muito maneira. O principal motivo pelo qual se demonstra tanto interesse e admiração pelo que fazemos é que manipulamos muitos materiais audiovisuais. “Você trabalha assistindo a vários filmes e séries!”. Mais uma vez, verdade seja dita, muitas vezes legendamos materiais que não causariam muita inveja na galera, mas trabalho é trabalho e nem tudo são flores.

Mas pendendo para o lado realmente interessante, que é assistir a muitos filmes e séries, você já parou para se perguntar, como tradutor de AV, o quanto você entende de cinema e o quanto o seu conhecimento da área influi no seu trabalho? Ou mesmo como curioso, já pensou em como o seu entendimento dos elementos cinematográficos te ajuda a entender uma produção audiovisual e se relacionar com ela? Interessar-se por cinema é o pré-requisito mais importante para ser tradutor audiovisual, mas se considerarmos a TAV uma etapa da pós-produção do filme, o que ela de fato é, entender de cinema se torna condição sine qua non para atingir um nível de qualidade elevado na tradução.

Pensando nisso, resolvemos trazer para você uma série de posts que vai ajudar a todos a entender mais sobre cinema e transportar isso para os nossos trabalhos com TAV e nossas vidas de espectador também. Em colaboração com o editor e finalizador da m.art.ucci Ivan M. Franco, trazemos nesta quinta a primeira edição da série. Vamos lá?

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Quando imaginamos um diálogo qualquer entre duas pessoas, utilizamos artifícios comuns e já estruturados nas formas narrativas conhecidas: podemos imaginar esse diálogo escrito como em romances, separado por travessões entre cada personagem; talvez com balões mostrando quem diz cada fala num quadrinho. Em um filme, provavelmente nós faríamos como um diretor: as pessoas envolvidas não ficam completamente de frente uma para a outra, mas um tanto perpendicular, para que a câmera possa enquadrá-las e captar um número maior de gestos e expressões.

No cinema, essa maneira de apresentar um diálogo já é considerada como clássica, o enquadramento comumente usado para situar pessoas e diálogos em um determinado ambiente de forma eficiente. Após estabelecer a posição das personagens dentro daquele local, podemos trocar os pontos de vista e acrescentar novos elementos e camadas ao diálogo.  Isso pode ser feito de inúmeras maneiras: um enquadramento baixo virado para cima pode causar a impressão de superioridade de uma personagem sobre a outra; um enquadramento muito fechado nos olhos pode demonstrar surpresa (ou basta contratar o Marlon Teixeira); algumas perspectivas podem ser completamente subjetivas, através do uso de pontos de vista peculiares, seja de animais ou até de objetos inanimados. Tudo isso ainda é considerado clássico.

Quem quiser ter acesso ao precioso material completo de expressões faciais, pode acessar a matéria do BuzzFeed em https://www.buzzfeed.com/raphaelevangelista/e-impossivel-ficar-indiferente-as-sete-caras-do-cinema?utm_term=.ctvzxgeG6#.gn5VDJna7
Expressão de surpresa by Marlon Teixeira. Quem quiser ter acesso ao precioso material completo de expressões faciais, pode acessar a matéria do BuzzFeed aqui.

Esses recursos narrativos vêm de um planejamento anterior e passam, de maneira resumida, pelo roteiro, direção de fotografia, direção de atores e edição. Mas resumir dessa forma é desconsiderar cada outro elemento que acompanha uma narrativa audiovisual: deixamos de citar as cores usadas, caso sejam usadas cores; a produção de arte e todo seu figurino ficam negligenciados; o próprio trabalho dos atores fica em segundo plano.  Queremos dizer que cada profissional ou artista responsável por algum elemento da narrativa precisa considerar os outros elementos para que a obra possa expressar ao máximo o que o autor pretende. Se por alguma razão o filme for preto e branco, não fará muito sentido o diretor de arte trabalhar com milhares de cores diferentes. O cinema é uma arte feita por muitos autores, por mais que seja idealizada por apenas uma pessoa.

Ao chegar à tradução audiovisual, é a nossa vez de considerar o máximo de elementos em cena para fazer o nosso trabalho. Apenas escutar a fala e olhar brevemente para a cena, desconsiderando as sutilezas que marcam aquele momento pode, em menor escala, tirar da beleza que um diálogo traduzido com sensibilidade cinematográfica poderia adicionar à cena; ou, em maior escala, causar discrepâncias e tornar grosseira a TAV. Dar atenção ao enquadramento permite que as falas traduzidas acompanhem a intensidade desejada pela cena. De forma semelhante, a luz e cor apresentadas pela produção dizem muito sobre o que se quer comunicar ao espectador, bem como as palavras escolhidas na tradução. Assim, se luz e iluminação são relevantes para o filme, devem ser para a tradução também.

O filme vencedor do Oscar deste ano “Moonlight – Sob a Luz do Luar”, legendado pela LBM, dá vida à dura vivência do protagonista Chiron, menino negro, pobre, mãe dependente química, que se descobre homossexual, acaba espancado, vai preso e se torna traficante de drogas. Diante dessa sinopse, o tradutor poderia facilmente adotar uma linguagem igualmente dura todo o tempo, que refletisse a realidade ali ilustrada. As cores do filme, no entanto, vêm nos dizer o oposto: ao dividir o filme em três capítulos, cada qual com um tratamento de cor diferente, a produção se afasta de um registro realista e documental para criar uma atmosfera onírica, em que o espectador não só é testemunha dos duros eventos vividos por Chiron, mas também pode mergulhar na sua vida emocional.

Em outubro do ano passado, o IndieWire publicou um artigo extremamente detalhado sobre esse aspecto do filme, com imagens inéditas que comparavam cenas do filme extraídas diretamente da câmera e suas versões pós tratamento (leia o texto em inglês na íntegra aqui). Na imagem abaixo do ator Mahershala Ali, vemos que a alta saturação deixa o visual muito mais quente, trazendo mais textura ao tom de pele. Não coincidentemente, o primeiro capítulo do filme traz diálogos de reflexão sobre a cor de pele negra dos personagens e considerações sobre a luz do luar cubano, contrastando com a paisagem californiana. Confirmando essas relações, o colorista do filme Alex Bickel disse que “foi seu trabalho desenvolver paletas que proporcionassem o impacto emocional desejado pelos criadores do filme”.

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E o impossível aconteceu: não é que conseguiram melhorar a cara do Mahershala Ali?

O diálogo entre a TAV e esse movimento estético, trazido pelos elementos cinematográficos da luz e do tratamento de cor, se dá numa trama muito delicada de legendas que mistura registros formais e informais, gírias e linguagem poética, expressando ao mesmo tempo profundidade e sensibilidade, num contexto em que seria difícil de desvincular o conteúdo do filme a visões clichês de questões sociais sem a ajuda dessa tensão visual. Um filme como “Moonlight”, preenchido de silêncios brilhantes e às vezes até devastadores, determina esse cuidado com as legendas para que a experiência proposta pela obra não fique prejudicada. O resultado é uma narrativa que nunca viola a nossa suspensão da descrença e permite que todas as suas camadas sejam absorvidas e contempladas pelo espectador. O diálogo perfeito entre artistas e público.

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Ivan M. Franco é formado em cinema pelo curso de Imagem e Som da UFSCar, especializado em roteiro e direção, trabalhando há mais de 10 anos com montagem e finalização de obras audiovisuais. Também se dedica a experimentações artísticas com fotografia, vídeo e música.

A LBM em cartaz: Janeiro, Fevereiro e Março

Caríssim@s leitor@s,

Long time no see! O ano começou em meio a muitas correrias e a gente ficou como? Atolado de coisas para fazer! O que foi, Tim?

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Tá bom! Só viemos aqui correndo contar o que aconteceu nos últimos três meses. Vamos logo? 🙂

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JANEIRO

Janeiro foi um mês tranquilo de estreias lbmísticas. Contamos com “Dominação” nas telonas, uma parceria com a PlayArte Pictures. Para quem gosta do gênero terror trabalhado nas possessões, o filme traz características interessantes, como o queixo do Aaron Eckhart o exorcista “terapeuta” que entra na mente das pessoas para expulsar os demônios que lá fizeram suas casinhas. Essa abordagem afasta a narrativa da linha religiosa que filmes sobre possessão costumam tomar. Uma perspectiva interessante!

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Por que é tudo tão difícil com esses demonhos, sem or?

FEVEREIRO

Passando para fevereiro, apenas muito <3 no coração. Nossas duas estreias em parceria com a Diamond Films foram nada menos do que Oscar material.

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Diva Natalie Portman no papel de Jackie. Trejeitos exagerados e modo de falar peculiar da primeira-dama foram magistralmente reproduzidos pela atriz.

Começamos na primeira semana com “Jackie”, esse recorte espetacular sobre a morte do presidente Kennedy da perspectiva da primeira-dama. O filme é de ritmo tranquilo e falas espaçadas. No entanto, escondia muitos momentos em que a pesquisa de contexto foi crucial. O tradutor principal do filme, João Artur, nos escreveu alguns parágrafos detalhando momentos do seu processo de tradução:

Dentre os vários desafios, talvez o maior deles tenha sido com a pesquisa, afinal o filme é muito preciso e, principalmente, detalhista do ponto de vista histórico. Há muitos momentos em que pessoas, locais e acontecimentos relacionados à família Kennedy são citados superficialmente, às vezes numa única fala, mas que precisei estar seguro do que estava sendo tratado antes de tomar escolhas tradutórias.

Deixo aqui dois exemplos:

Ao ser orientada para desembarcar pela traseira do avião para evitar a imprensa, Jackie Kennedy diz ao médico pessoal do ex-presidente que não o faria, pois isso seria uma conquista para a Birch Society, grupo da direita conservadora que antes da visita de John Kennedy a Dallas, onde o presidente foi morto, organizou protestos e espalhou mais de 5 mil cartazes do tipo “Procura-se” com a foto do presidente, com todo o tipo de acusação, inclusive de ser “frouxo” com os comunistas. Foi uma decisão simples, então, a de sempre mencionar o nome completo do grupo, John Birch Society, para contextualizá-lo melhor para o público.

Mais tarde, pouco antes do funeral do presidente, seu irmão, o senador Bob Kennedy, diz que a família parece estar “administrando uma pousada” ao receber tantos convidados para o velório/funeral. E, em meio a sobrenomes de expressão na sociedade americana da época e ofertas de hospedagem em residências de verão e afins, ouvimos que “And Truman is at Blair House”. Uma leitura menos atenta num primeiro momento, propiciou uma legenda como “E o Truman está na casa dos Blair” ou “E o Truman está na casa da família Blair”. Porém, ao prestar mais atenção na preposição “at”, resolvi fazer uma pesquisa mais aprofundada e confirmei minha suspeita. A Blair House é uma residência oficial do governo americano, como a Casa Branca, mais especificamente um palácio em Washington destinado a receber convidados do presidente. E a versão ficou “Truman está hospedado na Blair House.”

Obrigada, Johnny 🙂

Tocando o barco para a última semana do mês, a estreia de “Moonlight – Sob a luz do luar” emocionou todos nós da LBM e, com certeza, todos que tiveram o privilégio de assistir a esse filme indescritivelmente fantástico. O filme já estreou por aqui dono de um Oscar novinho de Melhor Filme; maior sucesso, impossível. Não vamos estragar dando spoilerzinhos. Diremos apenas: assistam.

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O arrepiante azul que perpassa todo o filme.

Temos, no entanto, muito a dizer sobre a tradução desse filme. Um projeto trabalhoso, que contou com muitas estratégias de tradução, e muita sensibilidade também. Um filme delicado para o tradutor, pois o sotaque e o linguajar utilizado pelas personagens dificulta o trabalho até mesmo do mais proficiente dos ouvintes de inglês, colocando as legendas em destaque. Hora de jogar na retaguarda? Nada disso; hora de ousar muito. Felizmente, recebemos muitos elogios por esse trabalho, incluindo esta declaração pública de uma colega de profissão:

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Estamos preparando um post especial apenas sobre o “Moonlight”, para que possamos compartilhar mais informações e gerar mais discussão. Enquanto isso, deixo vocês com nossa legenda preferida do filme:

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Ainda dá pra ver toda essa beleza nos cinemas, o filme ainda está em cartaz em algumas poucas salas em Sampa e no Rio.

MARÇO

Seguindo na escadinha que está 2017, março veio com três estreias do ratinho. Começamos com “Personal Shopper”, nossa parceria com a chiquérrima Imovision. Esse drama meio apavorante, que nos deixou com a pulga atrás da orelha, chegou causando por onde passou e ganhou avaliação cinco estrelas de nada menos que The Guardian. Os adjetivos “captivating, bizarre, tense, fervently preposterous and almost unclassifiable” estão presentes na crítica da publicação (leia aqui). Vale a pena dar uma olhada nessas comprinhas, hein?

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Confesso que sou muito parcial a fotos em transporte público, são sempre as melhores.

Na mesma semana, “Versões de um Crime” foi para as telonas mostrar Keanu Reeves montado na elegância, de terno e muito cinismo. O suspense judicial se desenrola no tribunal, enquanto o ator, que interpreta um advogado um defesa, constrói seu caso sem saber todos os fatos, pois seu cliente se recusa a falar qualquer coisa a respeito. A tradução foi um baita trabalhão com todos os termos jurídicos e suas peculiaridades territoriais. Ao lidar com materiais internacionais que trazem conteúdo jurídico, é sempre MUITO importante consultar especialistas e material especializado para fazer as equivalências certas. No caso do nosso filme aqui, a LBM contou com a consultoria de dois advogados. Isso porque diferenças entre o direito brasileiro e o direito americano podem ocasionar uma série de besteiras na legenda, desde de termos traduzidos literalmente e neologismos mal-vindos (já vi uns “assassinatos de primeiro grau” por aí) até equívocos grosseiros na interpretação dos termos. Quem já teve que lidar com uma situação tradutória parecida sabe que a common law americana e a civil law brasileira são sistemas totalmente diferentes, cada qual seus termos e significados. Não se enganem, tradução é muito estudo!

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Garoto, desembucha.

“O Espaço Entre Nós”, da Diamond Films, fechou nosso primeiro trimestre. Seria o primeiro amor um sentimento extraterrestre? O filhote de ficção científica com romance adolescente traz essa metáfora em si e muitas reviravoltas. Para quem perdeu no cinema, o filme chega ao Netflix já já!

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Terra ou Marte? Fotografia capciosa!

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E agora? A gente volta ao trabalho! Logo logo tem mais 😉