Por que a legenda não inclui todos os surdos?

Caros leitores e leitoras,

Nesta quinta, o papo é sério e reto: acessibilidade audiovisual para surdos e o que não sabemos sobre ela.

É comum haver questionamentos sobre por que a janela de Libras é necessária quando já há legendas descritivas. Não seria a leitura das falas a solução do problema de todos os surdos? Não, senhores.

Nossa parceira intérprete Paloma Bueno, em parceria com a também intérprete e tradutora Juliana Fernandes, escreveu esse incrível texto que trazemos abaixo, explicando as coisas que não sabemos sobre esse público que agora procuramos incluir no mundo audiovisual (postado originalmente no LinkedIn – link para o artigo original no texto).

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Muito além de uma obrigação legal, a acessibilidade (linguística, no caso) é um recurso que permite aos surdos ampla participação nos diversos espaços sociais, bem como o exercício da cidadania; é um direito e não um favor! Vez ou outra recebo questionamentos como “pra que a Libras, ou, por que a legenda em português não é suficiente? Como assim, surdo não sabe ler?”.

Nosso objetivo neste artigo nem de longe é esgotar o assunto, mas sim apresentar alguns dados no sentido de propor algumas reflexões sobre os entraves, o perigo e o erro em generalizar as necessidades.

Neste artigo, comentei especificamente sobre a insatisfação do público surdo na última propaganda eleitoral em 2016.

Alguns dados

Segundo o Censo IBGE (2010), o Brasil tem 10 milhões de surdos. Desses, 2,1 milhões têm muita dificuldade na comunicação em português escrito, pessoas com surdez profunda e usuárias da Libras – Língua brasileira de sinais.

Legislação

Já somamos décadas de lutas e leis que promovem a acessibilidade comunicacional. No entanto, a LBI – Lei Brasileira de Inclusão – é a mais recente.

A Ancine – Agência Nacional de Cinema – prevê a inclusão de recursos de acessibilidade no cinema para obras que utilizam recursos públicos. As propostas iniciais previam que até 2015 esses recursos seriam garantidos. O prazo da Ancine é que até novembro de 2018 as salas devem oferecer equipamentos para promover acessibilidades ao público de pessoas com deficiência. A câmara técnica ainda não decidiu a tecnologia-suporte a ser adotada nas salas de cinema.

Educação

No ensino público, não é novidade a grande problemática da má qualidade do ensino de línguas estrangeiras. Sabemos que é insatisfatória! E vários são os motivos, como a precária formação docente para ensino de segunda língua, por exemplo.

Lembro-me quando estava no primeiro ano do ensino fundamental aprendendo as sílabas e repetindo os escritos do quadro “bá-bé-bi-bó-bú…”, e que acredito que até os dias de hoje essa metodologia permanece, independentemente do público de alunado que a escola tem recebido! Perceba que o sistema ensina a escrita conectando-as com a pronúncia do português falado! Então eu os questiono: como os surdos aprendem a partir de uma abordagem auditiva? Obviamente que esse sistema de ensino não dá conta, nem de longe, de ensinar o português como segunda língua para os alunos surdos. É preciso considerar suas especificidades linguísticas a partir da lógica da modalidade de uma língua sinalizada e enquanto primeira língua para ensinar o português como segunda língua na modalidade escrita.

Condição histórico-linguística dos surdos

A maioria dos sujeitos surdos na atualidade nasceram em famílias de pais ouvintes, em muitos casos também a surdez é descoberta tardiamente, fazendo com que cheguem na fase escolar SEM LÍNGUA. Como aprender português sem antes ter uma primeira língua de uso social? A língua que o torna sujeito neste mundo, desenvolve aspectos de sua subjetividade e tem capacidade de dar sentido às coisas. E, ao chegarem na escola, como acreditar que vão aprender o português com fluência?

Imagine como é até hoje o ensino para surdos: defasado. De abordagem oralista, pela concepção clínico patológica da surdez. Saiba que é bem pior que o ensino de inglês. Então já dá para imaginar qual é a realidade da leitura do português para os surdos como segunda língua? Não há dados objetivos ainda, mas frequentemente vemos notícias como: “surdos não têm intérpretes em sala de aula / demanda por intérpretes é maior do que quantidade de profissionais disponíveis no mercado/ surdo processa escola ou universidade por falta de acessibilidade“, e por aí vai.

Nos dias e condições atuais, ainda não é possível cobrar por algo que não foi oferecido durante o Ensino Básico. Por esses motivos apresentados, o surdo realmente precisa de ACESSIBILIDADE EM LIBRAS!

A importância e a limitação da legenda

A legenda cumpre com seu papel para uma minoritária parcela de surdos, mas não abrange todas as necessidades, faixas etárias e condições/histórico-linguísticas; portanto não atende a todos os cidadãos surdos.

Reflita ainda…

  • No caso das crianças ouvintes analfabetas: elas não dão conta de ler as legendas e apreciar um filme ao mesmo tempo. Vemos vários adultos ouvintes também que não conseguem acompanhar versões legendadas e preferem a versão dublada.
  • Cidadania: imagine quantos eleitores gostariam de votar consciente e quantos dão votos desinformados, já que não tiveram a oportunidade de conhecer os planos de governo propostos pelo candidato. Tudo isso por falta de acessibilidade.
  • E os noticiários? Saiba que os surdos pedem aos ouvintes para explicarem o que está acontecendo no mundo. Há blogs de revistas especializadas, como a Revista D+ Inclusão e a TV INES, que selecionam notícias relevantes e as traduzem para a comunidade surda semanalmente. Somos diariamente e durante 24 horas do nosso dia expostos à informações nesta era do conhecimento, então imagine para um sujeito surdo o que é estar alienado destas oportunidades a partir da privação linguística?
  • Uma sociedade verdadeiramente justa, humana e inclusiva também é aquela que leva em consideração as especificidades das necessidades, onde a alteridade, a equidade e a diversidade são fatores de alta relevância em favor das boas práticas sociais. Os grupos minoritários necessitam ter voz e escuta, pois são a partir deles que tais práticas serão beneficamente balizadas.

Sendo assim, quando falamos em acessibilidade comunicacional ou linguística para sujeitos surdos, é de extrema importância que todas as possíveis opções estejam presentes: legenda em português escrito, janela de libras e até as informações gráficas da audiodescrição, que ajudarão tanto no entendimento contextual de acontecimentos sonoros durante a exibição do material quanto na escolha das opções presentes para melhor acompanhamento e aproveitamento das informações publicadas.

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Tapão na cara da sociedade, hein? Obrigada Paloma e Juliana pelos esclarecimentos. Sigam as intérpretes no LinkedIn para acompanhar os textos e notícias do mundo da Libras:

https://www.linkedin.com/in/palomabuenolibras/

https://www.linkedin.com/in/julianafernandestils/

Quer saber mais sobre o trabalho que fazemos com acessibilidade audiovisual? Conheça os nossos serviços!

Cinema para tradutores de AV: O diálogo como elemento gráfico

Olar, 2018!

Chegamos nesse janeirão lindo com o segundo post da série “Cinema Para Tradutores de AV”, em colaboração com nosso finalizador e editor Ivan M. Franco (saiba mais sobre a nossa equipe!). Se você perdeu o primeiro, clique aqui. Se não, vamos que vamos.

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Como uma arte recente, o audiovisual ainda é uma área com possibilidades vastas. Há poucas décadas que o som foi introduzido aos filmes como elemento diegético. O maior medo de Eisenstein era o de sons serem introduzidos aos filmes sem contexto, como, por exemplo, trilhas musicais. Isso significa que muitos elementos surgiram – e irão continuar surgindo – frutos de necessidades técnicas, ou então apenas experimentações.

Aceita que dói menos, Eisenstein.

Antes do som, elementos gráficos cumpriam seu papel comunicativo no cinema mudo: liam-se os diálogos apresentados antes ou depois, em cartelas. Somente essa opção já compreende diversas interpretações sobre o contexto do diálogo. A arte da montagem e da edição andava de mãos dadas com o uso das cartelas que traziam os diálogos, ordenando sequências para contar uma história que fazia uso de todos os elementos possíveis, dando sentido e ritmo para o espectador. Se um diálogo tiver uma edição apenas funcional, teremos algo parecido com uma novela: um plano geral para situar o diálogo num espaço. Vez ou outra, vemos a reação da personagem que apenas ouve, para efeitos dramáticos. Mas tirando a linguagem corporal e audiovisual, teremos questões com o idioma falado pelas personagens. 

Então, temos legendas. Elas não interferem nas atuações e nem exigem alterações drásticas de áudio. São o artifício final quando se trata de baixo custo e globalização de uma obra. Mesmo legendas tendo surgido em filmes antes da sincronia de som com imagem, ainda são negligenciadas como recurso narrativo. Ainda entendemos legendas como uma muleta para a cisão que são as línguas humanas. Em se tratando de legendas tradutórias, descritivas ou transcritivas, podemos afirmar com toda a certeza que a montagem/edição não é feita levando em consideração o espaço que ocuparão na tela e, consequentemente, como irão interferir na narrativa visual.

Montagem  + legenda = ?

As soluções, é claro, ficam a cargo dos legendadores, e nem sempre são satisfatórias. Muitas vezes, é preciso escolher: respeitar o corte de cena e deixar o tempo leitura ruim, ou respeitar o tempo de leitura e deixar a legenda vazar para a cena seguinte, interferindo com a estética. Uma solução elegante para que legendas possam coexistir com a arte de um filme são as legendas eletrônicas: projetadas fora da tela – mas dentro do campo de visão do espectador – elas cumprem sua função sem a exigência de adaptação da linguagem audiovisual. Mas o fato de estarem fora da tela também exige do olhar, que precisa viajar muito, e acaba tornando a leitura mais cansativa e desconectada da imagem. Ou seja: em algum aspecto, saímos perdendo.

Das poucas vezes em que as legendas foram utilizadas como ferramentas da narração, destacam-se as comédias: “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, de Woody Allen – onde legendas numa cena mostram o que as personagens estão pensando; e “Máquina Quase Mortífera”, na qual o policial interpretado por Emilio Stevez tropeça nas legendas durante uma perseguição. No primeiro, a legenda insere uma nova camada narrativa: o espectador tem mais capacidade para compreender a trama e seus personagens. Já no segundo, as legendas estão dentro do universo do filme, de uma maneira surreal, mas que o espectador é capaz de compreender. O interessante é entender que a piada no filme com Emilio Stevez é justamente a de que legendas podem atrapalhar. Elas entram no campo de visão destinado para contemplação fotográfica. Voltamos à questão da edição: quando um filme é feito, raramente se considera a possibilidade de legendas sendo incorporadas ao quadro.

Legendas de diálogos internos em “Noivo Neurótico, Noiva Nervosa” trazem verdades.

Não é que os roteiristas, diretores e montadores precisem se limitar enquanto autores. É o contrário: estamos num momento em que se exige criatividade para solucionar uma questão da legendagem. Talvez seja o melhor momento para inovações na área e a quebra de paradigmas clássicos, ao que se somam as questões de acessibilidade. Não é à toa que quadrinhos e jogos eletrônicos só foram considerados arte neste século: eles trazem as possibilidades de exploração que só a marginalidade pode fornecer. Aguardamos cenas dos próximos capítulos!

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