Audiodescrição na arte: Informação? Experiência?

Como nos relacionamos com a arte e com a experiência estética da arte? Som, imagem, texto, cultura, inferência. Isso tudo vem trançado. E o que a acessibilidade comunicacional, especificamente a audiodescrição, tem a ver com isso?

Nesse meu tempo como bacharel em Letras, e dentro dele o tempo como audiodescritora-roteirista, passei por várias questões, inquietações, propostas e missões! Isso tudo partiu de observação de vários formatos artísticos, estudo, prática e de ouvir a recepção do público. Pensando principalmente no audiovisual e no teatro, vou compartilhar um pouco dessas reflexões.

A Audiodescrição como fazer técnico e profissional

Se você está chegando e ainda não sabe quem é a Audiodescrição (AD para os íntimos ou necessitados de economia de caracteres) na fila do pão, aqui vai a bio dela: Audiodescrição é uma modalidade de tradução intersemiótica, pois traduz não entre línguas, mas entre linguagens. A linguagem de partida é a linguagem dos signos visuais. Tudo o que é imagético: cores, gestos, símbolos, feições. Existe uma divisão básica entre audiodescrição de imagens estáticas (o que não se move: foto, desenho, card, pôster) e audiodescrição de imagens dinâmicas (o que se move, seja gravado ou ao vivo: filme, série, peça de teatro). Em alguns contextos podemos ter híbridos, como uma aula em que existe o contexto geral que se move e as imagens estáticas de um slide.

Audiodescrição para quem?

O foco dessa técnica é criar acesso para quem apreende informações sem o uso da visão. Por isso é um dos recursos da acessibilidade comunicacional. A experiência de pessoas com deficiência visual (cegas ou com baixa visão) pauta a construção de uma AD, e por isso mesmo nós, audiodescritores-roteiristas, sempre trabalhamos em conjunto com um audiodescritor-consultor, que é uma pessoa com deficiência visual especializada na área. Mas há relatos que mostram que outros perfis se beneficiam dela. Por causa da característica básica da técnica, que é trazer as informações para as palavras, pessoas que têm mais facilidade para receber, se conectar ou manter atenção à informação verbalizada do que à não verbalizada podem acabar tendo na audiodescrição um apoio na construção do acesso. Trazer para o plano verbal e sonoro pode, em alguns casos, aproximar a informação de autistas, pessoas com TDAH, pessoas com deficiência intelectual. Ou alguém que assista a um filme sem ter muita inserção cultural no contexto dele e acabe captando mais nuances do que é apresentado através da verbalização.

E quando a Audiodescrição se encontra com a Arte?

Com base nisso tudo, como você deve imaginar, técnicas, diretrizes e recomendações foram se desenvolvendo para deixar essa modalidade de tradução funcional. E de fato, deixam. Mas quando experiência estética (estética aqui inclui imagem, som, texto, expressividade e significação) entra no jogo, temos que ter mais alguns tipos de cartas no nosso deck. E para isso, defendo a construção de uma audiodescrição que harmonize com a narrativa, que não seja nem intrusiva e nem isenta, aliando a voz discursiva (do roteiro), a intepretação vocal (da locução) e o ritmo (da mixagem do áudio).

Isso pode ser bem desafiador. Existe a reponsabilidade tradutória de definir o que terá destaque e o que será sacrificado em nome do ritmo. Pois audiodescrever é, como traduzir em geral, fazer escolhas. E essas escolhas direcionam o olhar do espectador de forma análoga à iluminação, que escolhe pontos e elementos para priorizar e definir o todo. Uma mesma cena em filmes diferentes pode receber audiodescrições diferentes, pois o foco de importância entre as várias coisas mostradas pode ser outro. Imagine: em uma cena de uma festa com 30 pessoas, é evidente que uma audiodescrição não poderia descrever em detalhes a aparência, as roupas e as atitudes das 30. Então entra a sensibilidade narrativa de entender o que é essencial ali e como transmitir isso. E é nesse como que moram as polêmicas. Mesmo com plena compreensão de que o público com deficiência visual não deve ser subestimado, e cada indivíduo tem seu próprio campo de interpretação, a máxima dos manuais “descreva o que você vê, não interprete” parece não dar conta da realidade da função de audiodescrever um filme. Mesmo que você não enfeite o pavão e não enverede para o qualitativo, descrevendo as coisas como “belas” ou “horrendas”, a escolha vocabular e o jeito de cadenciar as orações vai dar o tom do seu texto.

Alguns manuais de audiodescrição parecem feitos (com ótima intenção) com base em experiências pedagógicas, e não de arte, narrativa e entretenimento. E aí, quando a experiência artística entra em cena e você percebe que as soluções oferecidas por esses manuais soariam pedagógicas demais, anatômicas demais ou totalmente fora do ambiente lexical daquela obra, eles somem da sua frente como o Mestre dos Magos. E aí, coragem, roteirista. É a hora de usar todos os conhecimentos e habilidades que desenvolveu. Inclusive, mas não apenas, o que os manuais trouxeram. “Depende do contexto” são palavras que quem lida com tradução e audiodescrição poderia mandar grafitar na parede do lugar em que trabalha. Meu desafio tem sido nem pisar em ovos e nem viajar na maionese feita com os ovos nos quais estou tentando não pisar. Talvez fazer omelete seja uma boa. Mas não dá pra fazer omelete sem quebrar alguns… tá, parei.

A busca por uma AD nem intrusa nem isenta, e sim diegética

A busca pelo equilíbrio é um caminho que traz riscos, essa busca por não ser nem intrusa na narrativa nem isenta da narrativa. É possível ser direta, comunicativa e ter estilo com pequenas ousadias textuais, tomando liberdades com os pés no chão. Mas não existe deck infalível. Temos que saber combinar as cartas básicas, que dão conta quase sempre, segurando um jogo básico que cumpre sua função, e as cartas situacionais, aquelas que ganham o jogo quando usadas no momento certo, mas não seguram sozinhas (não tente montar um deck só com elas). Isso vale para as diretrizes básicas, para o banco de soluções audiodescritivas que a gente vai montando ao longo do tempo e para aquelas soluções específicas que têm tudo a ver com aquela cena e trazem um léxico autêntico para o texto.

Às vezes o estritamente descritivo não é diegeticamente interessante e vale a pena arriscar e lançar mão de um atalho comunicativo. Dois exemplos:

Estritamente descritivo: Uma criança de camiseta verde corre atrás de outras quatro crianças. A de camiseta verde toca o ombro de outra, de vestido vermelho, e esta começa a correr atrás das outras quatro.

Atalho comunicativo: Cinco crianças brincam de pega-pega.

Estritamente descritivo: Toca a bola com o peito do pé direito e a move para baixo do calcanhar. Posiciona a bola na parte lateral do pé. Corre e empurra a bola pelo campo, alternando-a entre a lateral interna e a lateral externa do pé direito enquanto mantém o pé esquerdo atrás.

Atalho comunicativo: Mantém a posse da bola.

Claro que, como sempre, depende do contexto. Mas percebe como, dependendo do tempo que você tem para inserir o segmento audiodescritivo no filme sem cobrir falas importantes, o atalho pode ser necessário, ou pelo menos ser mais dinâmico e proporcionar um ritmo mais interessante junto com os sons do filme, resultando em uma experiência artística mais afinada com o material?

Aumentando o Deck!

Isso tudo pode ser construído de diversas maneiras dependendo do projeto. A comunicação com a produção, por exemplo, pode dar à equipe de audiodescrição cartas que funcionam naquele material, através de respostas a perguntas, sugestões e divulgação conjunta, levando a AD para um lugar menos tímido dentro do projeto, menos tacanho, menos saindo da festa e se despedindo com “desculpa qualquer coisa” e mais “até a próxima, pode ficar com o resto do bolo salgado, que eu vou levar uns brigadeiros aqui na tupperware”.

Uma pintura tem as cores e os traços para compor uma experiência artística. Uma audiodescrição tem palavras, frases, entonação, pontuação vocal, ritmo em conjunto com o ambiente sonoro da obra. Esses recursos são maravilhosos, e se apropriando deles é possível ir para lugares mais poéticos, mais divertidos, mais formais ou informais.

Acredito que a AD brasileira ainda tem muitos caminhos para percorrer, e vamos construir pontes e sinalizar trilhas nos próximos anos. Bora andar!

Este texto foi escrito especialmente para o blog da LBM por Fernanda Brahemcha, Audiodescritora, Tradutora Audiovisual e amiga do ratinho.

Os Easter eggs em “Midsommar”

Caros quarentenados,

Neste domingo de Páscoa de isolamento, os ovos que trazemos são especiais! Você já ouvir falar em Easter eggs em obras audiovisuais?

São daqueles que você precisa encontrar como numa gincana: objetos ou imagens que fazem referência à cultura pop, ou que podem antecipar a trama do filme de alguma forma. Hoje vamos compartilhar alguns Easter eggs do segundo tipo, os que o diretor Ari Aster deixou escancarado em seu filme “Midsommar – O Mal Não Espera a Noite, de 2019”. Espera, seriam então… Aster eggs?

Como conhecemos tão bem esse filme? Fizemos a tradução, legendagem e acessibilidade para o cinema em 2019, em parceria com a Paris Filmes 😉

Nosso supervisor de pós-produção, especialista em roteiro e cinéfilo Ivan M. Franco descreve de forma bem-humorada todas surpresinhas que o filme traz para vocês (clique aqui para saber mais sobre a nossa equipe). Preparados?

***

“Midsommar” é um filme surpreendente. Quer dizer, mais ou menos. Mas logo mais eu me explico!

Ele começa nos mostrando o difícil momento que Dani, a protagonista, está vivendo: um grande drama familiar, acompanhado de um namoro que não parece ir muito bem. Em plena luz do dia, os eventos mais chocantes se densenrolam e vamos ficando embasbacados com o rumo que as coisas tomam. E nos perguntamos se fomos ingênuos de acreditar que aquilo tudo não estava por vir. E a resposta é que sim, fomos muito ingênuos. Spoiler alert: se você não assistiu ao filme, é melhor não continuar!

Se “Midsommar” fosse um Kinder Ovo, a surpresa estaria estampada na embalagem. Isso porque o filme todo está logo na primeira cena, na forma de uma pintura. A pintura é o grande Aster egg do fime. Ela dura aproximadamente vinte segundos e é separada pelas quatro estações, explicadas no filme como as quatro etapas da vida. Aqui já temos a narrativa em que Dani estará inserida: a separação entre ela e sua família, começando com a morte no inverno; e um recomeço da sua história, terminando com a vida no meio do verão.

O começo do filme é chocante… Mas fiquem tranquilos, porque só piora depois.

Seguindo na análise cronológica da pintura, vemos Dani conectada a seus pais por longos tubos. Os tubos antecipam a morte deles por asfixia junto da irmã com as mangueiras conectadas ao escapamento do carro no início do filme. Também temos uma caveira cortando o tubo que sai do umbigo de Dani, simbolizando a separação dela da família. O porque desse esqueletinho estar usando botas verdes, eu não sei. Mas está fofo.

A segunda parte mostra Pelle desenhando bem bonzinho, como se apenas observasse. Porém está do alto, revelando-o como alguém que tem controle das situações, tipo um títere. Nessa mesma parte, temos Christian consolando Dani pela morte de sua família, mas cruzando os dedos atrás das costas. Alguém com mais de seis anos conta pra ele que não funciona?

Olha a cara de anjo caído do Pelle.

Em seguida, o grupo de amigos de Christian: Josh, carregando livros e representando o culto; e Mark, com chapéu de bobo da corte (The Fool). É interessante notar que, quando Mark pergunta do que as crianças estão brincando, respondem para ele “esfola-bobo” (skin the fool) e, não muito mais tarde, Mark tem seu rosto arrancado. Pelle aparece guiando o grupo enquanto toca uma flauta. Ele é o Flautista Mágico do conto, que encanta e leva embora todas as crianças da cidade de Hamelin.

Essa terceira parte se passa na vila de Hårga, onde mulheres ostentam taças e caveiras. Talvez exista a chance de fazer escolhas certas ou erradas, determinando seu destino na vila. No caso do nosso grupo de amigos, quanto azar! No alto, temos o trono no qual Dani se sentará quando se tornar a Rainha de Maio, além do casal de idosos que saltam do penhasco. Aqui é importante ressaltar que os rostos dos idosos são os mesmo que dos pais de Dani, uma alusão às várias vezes em que Dani alucina ver sua família na vila. Temos também a primeira (mas não única) aparição do urso que será sacrificado e usado para colocar Christian dentro. Se tem gente que achava que a vila do Chaves era na verdade o inferno, não conheceu Hårga!

Reparem na meia por cima da calça de Josh, o bobo da corte.

A última parte da pintura mostra a dança em que Dani se torna a Rainha de Maio e pessoas sentadas à mesa para o ritual. Várias caveiras fofas também dançam aqui, representando os sacrifícios que serão feitos durante o festival, voluntários ou não. Mais para não.
A parte mais interessante aqui é o grande sol que aparece em oposição à caveira da primeira parte. Mas não é só isso: o filme termina com o rosto de Dani sorrindo, mesclado à construção amarela pegando fogo! Mais macabro que isso, só o sol dos Teletubbies!

Bom, essa imagem fala por si própria!

Enfim, estes são os principais Aster eggs que encontramos referenciados na pintura que abre o filme. Não é a primeira vez que Ari faz isso em uma obra sua. Quem sabe na próxima vez a gente mostre os segredos escondidos em “Hereditário”? 😉

***
Bateu uma curiosidade? Saiba mais sobre nossos serviços de tradução, legendagem e acessibilidade.

Agora, se quiser saber em que outras produções trabalhamos, veja nosso portfólio!

A pandemia e o futuro do cinema

Caros quarentenados e quarentenadas,

A pandemia chegou causando maremoto, e o barco do cinema virou. Com as salas todas fechadas por tempo indeterminado, resta a todos nós da indústria discutir não só como sairmos dessa vivos, mas também melhores.

Com esse intuito, na última quarta, dia 1, aconteceu um webinário organizado pelo Portal do Exibidor, em que os especialistas de mercado Paulo Pereira (Desbrava) e Luiz Morau (Quanta), com mediação de Marcelo Lima (Tonks), compartilharam seus insights e opiniões sobre o momento que o cinema está passando por conta do COVID-19.

Como prestadores de serviços dessa indústria, nós aqui da LBM acompanhamos a discussão e trazemos hoje neste post um resumo do que consideramos mais interessante e relevante, além da nossa própria contribuição.

Não deixem de comentar; o momento pede comunicação e conexão mais do que nunca.

***

Que experiência o cinema nos proporciona hoje, e qual experiência gostaríamos de ter no cinema daqui para frente? Esse foi o fio condutor do bate-papo que, em tom otimista, classificou o cenário pandêmico como uma oportunidade para a indústria. Sem muitos rodeios, os especialistas deixaram claro que os players do cinema que não entenderem que o momento é de disrupção — ainda que forçada — terão sérias dificuldades em sobreviver.

Seria simplesmente por conta de um gosto limitado do público que as salas de cinema há anos estão dominadas por blockbusters internacionais, preterindo conteúdos de pequeno e médio porte, documentários e filmes nacionais? A quantidade e variedade das produções consumidas nos streamings parecem mostram o contrário. A hora é de dar alguns passos para trás e repensar como o cinema vem se relacionando com o modo de vida das pessoas. Será que exibidores e distribuidoras têm estudado seu público adequadamente, fazendo uso da abundante quantidade de dados disponíveis sobre comportamento de consumo de conteúdos?

Tristezas e dificuldades à parte, a quarentena já provou que o mundo inteiro está ressignificando sua convivência social. Da mesma forma que há alguns anos a Netflix começou a revolucionar a forma como consumimos audiovisual, estamos vendo que é possível explorar todo tipo de contato remotamente, desde reuniões de trabalho até festas de aniversário por Skype. E isso dá aos eventos presenciais outra conotação, pois passamos a entender que não é preciso estarmos juntos para estarmos juntos. Então, para nos darmos ao trabalho de sair de casa, esperamos ter uma experiência relevante pela frente.

Há anos que a experiência que o cinema proporciona é aquela de assistir a um filme, geralmente inédito, numa tela gigante, comendo pipoca. E isso diz muito sobre o papel soberano que a programação tem sobre a manutenção dos cinemas: os filmes devem ser cada vez maiores, mais cheios de efeitos, mais celebrados (e mais escondidos a sete chaves). Mas com a quantidade de opções que temos, não só para o audiovisual, mas para nosso lazer como um todo, será que o investimento (alto) do ingresso está justificado?

A última vez que tive um momento mágico no cinema foi quando, em Los Angeles, fui ao Rooftop Cinema Club. Esse cinema, como sugere o nome, fica no rooftop entre duas torres comerciais; sua tela é a lateral de um dos prédios. A programação é de filmes icônicos; as cadeiras são de praia. São dados fones, cobertores quentinhos e a pipoca é refil por um preço razoável. O lugar é decorado sem exageros com temática cinematográfica, e a vista é de tirar o fôlego. Na ocasião, assisti a “Os Bons Companheiros”, um filme que poderia ter visto em casa, mas sem aquela experiência arrebatadora.

Sim, isso é um cinema!

Então, como os especialistas apontaram no webinário, as empresas devem aproveitar a impossibilidade de operar para fazer renovações e reformas, investir em inovação e tecnologia, voltar diferente. Mas é preciso fazer isso olhando para as pessoas: o espaço online e físico e a programação trazem mais possibilidades de público do que o óbvio que temos visto.

É hora de levar as escolas ao cinema para assistir a documentários transformadores; é hora de exibir conteúdos alternativos de qualidade para diversificar o público; é hora de tornar o espaço online e físico dos cinemas 100% acessível para as pessoas com deficiência, viabilizando a sua ida ao cinema, desde a escolha do filme no site até a compra do ingresso na bilheteria. Quem sabe assim todos os closed captions, as audiodescrições e janelas de Libras que temos produzidos nos últimos anos, que ficam lá nos DCPs sem uso, possam ser desfrutados por quem quer e precisa delas!

Por aqui, temos uma esperança: que os cinemas fiquem vazios por alguns meses para que estejam mais lotados do que nunca nos próximos anos.

A LBM em cartaz: As Golpistas

Hoje é dia de estreia nos cinemas – segurem suas carteiras!

Para comemorar a estreia desse filmão encabeçado por ninguém menos que uma das mulheres mais poderosas do show biz na atualidade, Jennifer Lopez, trazemos uma tradução super especial. Nossa colaboradora Paula Barreto, em parceria com João Artur, preparou uma versão em português da crítica da revista Variety para o filme, publicada na ocasião da sua estreia oficial no Festival de Toronto, em setembro deste ano (saiba mais sobre a nossa equipe).

Que comece o golpe!

***

Resenha do Festival de Toronto: “As Golpistas”.

Levando seu sex appeal a um nível impressionante, Jennifer Lopez interpreta uma dançarina empreendedora com um esquema para ficar rica no filme de Lorene Scafaria baseado num crime real.

Hustlers
Crédito: STXFILMS

A sexualidade é uma arma que empodera as mulheres em “As Golpistas”, uma saga sedutora que retrata um crime real e é para uma gangue de bad girls de Nova York o que “Os Bons Companheiros” foi para a máfia – ou seja, mistura glamour e sex appeal regado a champanhe com a loucura de um grupo de dançarinas que reduziu a fortuna de vários endinheirados de Wall Street. Extravagante, erótico e impossível de ser ignorado, “As Golpistas” representa nada menos que um momento cultural, inspirado por um artigo escandaloso da “New York Magazine” (que sustenta firmemente o filme em saltos agulha de 15cm).O artigo adaptado pela roteirista e diretora Lorene Scafaria, que bebeu da fonte de  Scorsese, é estrelado por uma Jennifer Lopez como você nunca viu.

“Este país inteiro é uma boate de striptease. Tem quem jogue dinheiro e tem quem dance,” diz Ramona, a personagem de Jennifer Lopez, a Julia Stiles (toda profissional, ao estilo “A Identidade Bourne”). Stiles interpreta Jessica Pressler, que, sem julgamentos, investiga o caso. Praticamente todas em “As Golpistas” interpretam uma versão de uma pessoa real, embora Julia Stiles seja a única que ao ser escalada não precisou de uma mudança de visual milionária. Entre as atrizes que entram na dança, estão a estrela de “Podres de Rico” Constance Wu e a atriz de “Riverdale” Lili Reinhardt, além de participações coadjuvantes de Keke Palmer, Cardi B e Lizzo – que juntas valorizam uma profissão antes vista como imoral.

No aniversário de 25 anos do lançamento de “Showgirls”, uma profissão que já foi considerada degradante tem sido quase completamente repensada devido à terceira onda feminista – que tem Madonna (uma óbvia inspiração para a carreira de Jennifer Lopez) como símbolo, uma dominatrix da cultura pop que fez do sexo sua marca e da lingerie sua armadura no palco.  Em vez de rejeitar tudo que parece misógino e corrupto na sociedade, a geração X procurou subverter as instituições por dentro.

De repente, aulas de pole dance passaram a ser oferecidas em vários estúdios dos Estados Unidos e garotas festeiras e estrelas pornô passaram a ser tratadas como celebridades. Diablo Cody, uma jovem escritora brilhante que fez sua fama escrevendo na internet sob a alcunha de candy girl, ganhou um Oscar por escrever uma comédia agradável a favor do aborto. E strippers de Nova York – que enganaram, drogaram e roubaram dos ricos para dar a suas relativamente pobres carteiras – foram consideradas heroínas desafiadoras no que a imprensa chamou de “uma história moderna de Robin Hood”.

Ao transpor o artigo de Pressler para sua visão cinematográfica, Scafaria levanta questionamentos sobre representação logo de cara: que tipo de preconceitos as pessoas têm quando pensam em strippers? “As Golpistas” humaniza as mulheres que são o centro do enredo, dando a elas namorados, histórias de vida e, mais importante, autonomia. As dançarinas são espertas o bastante para incorporar qualquer fantasia masculina, mas fazem isso do seu próprio jeito, e Scafaria nunca se esquece do fato de que são elas que estão no comando o tempo todo: “Enrole na r*** do cara”, Ramona aconselha a ingênua Destiny (Wu), explicando de modo grosseiro porém chiclete que strippers ganham dinheiro para provocar, e não para realizar os desejos de seus clientes.

Samantha Foxx (nome verdadeiro: Barbash), a Ramona da vida real, já estava na casa dos 30 quando conheceu Roselyn Keo (que inspirou a personagem Destiny). A multitalentosa Jennifer Lopez, que sempre foi a personalidade mais elétrica em todos os filmes que já fez, tem uma diferença de idade de mais de uma década para a personagem que interpreta , mas ainda assim a estrela – que teve seu início de carreira dançando na série “In Living Color” – surpreende, mostrando movimentos de dança dignos de uma medalha olímpica em sua primeira cena. Destiny fica hipnotizada (e nós também) ao ver Ramona botar o Cirque Du Soleil no chinelo, girando e deslumbrando no palco como se fosse uma esplêndida sereia “rodopiante”, antes de deslizar até o chão e abrir espacates que fazem suas sandálias estalarem no piso.

Foi isso que o malsucedido diretor Steve Antin tentou fazer com a vergonha que foi “Burlesque”. “As Golpistas” é uma exaltação acrobática da feminilidade desmedida, na qual moças “saidinhas” deitam e rolam com o poder que têm sobre os homens – que, nesse caso, sem dúvida são o sexo frágil, escravos de uma libido que só é satisfeita quando gastam dinheiro. Claro que muita gente consideraria isso uma flexibilização da verdadeira força feminina, mas “As Golpistas” não tem tempo para esse tipo de argumento. O filme parece dizer que “tudo que é bonito é para se mostrar”, enaltecendo vários tipos diferentes de corpo, mas limitando o quanto os espectadores cobiçosos podem realmente admirar.

O fato de Destiny ser iniciante serve como desculpa para os movimentos desajeitados de Constance Wu (e, de qualquer forma, o foco de sua interpretação está em ser o núcleo em conflito moral da história) e dá a Scafaria um motivo para ir explicando a profissão aos espectadores. A menos que você já tenha feito ou recebido uma lap dance, nem todas as regras são óbvias – e, sinceramente, continuam sendo um tanto misteriosas, mesmo com a explicação imparcial do filme. Na boate Moves (uma mistura das boates Scores, Flash Dancers e Larry Flynt’sHustler Club), as meninas não são pagas para dançar e trabalham ganhando gorjetas, tendo que dar uma parte considerável (de 40% a 50%) para a boate, que fornece os aposentos onde os clientes começam a abrir de verdade a carteira.

Em “As Golpistas”, são as mulheres que objetificam os homens, reduzindo os clientes a uma variedade de estereótipos superficiais (só Usher, que interpreta uma versão ostentadora de si próprio, escapa ileso). A maioria é como Frank Whaley, um cliente ricaço presunçoso e bajulador que entra na boate pela porta dos fundos, como Ray Liotta no Copacabana em “Os Bons Companheiros”. Essa tomada capturada com Steadicam também serviu como inspiração para a cena de abertura em luz fluorescente que acompanha Destiny do camarim até o palco.

Alguns desses caras rasos de Wall Street – banqueiros e corretores que ganham milhões de várias maneiras desonestas – não pensam duas vezes antes de gastar um valor na casa dos seis dígitos numa única visita a Moves. “Eles podem te diminuir, ser possessivos, agressivos e violentos”, conta Destiny para sua entrevistadora, e cabe à nossa imaginação interpretar isso (a minha não parece ser muito boa, já que a filosofia “vale tudo” da personagem pareceser contraditória à cena em que ela chora após ultrapassar seu limite com um cara babaca).

É mais seguro para as mulheres trabalharem juntas – como Destiny começa a fazer com Ramona-, e isso também as ajuda a tirar mais dinheiro de seus caixas eletrônicos humanos. “São negócios, o mais honesto que eles fizeram durante o dia todo”, explica Ramona, comprando bolsas da Gucci com um maço de notas de um dólar ensopadas de suor enquanto uma vendedora certinha observa com olhar desaprovador.

E é quando a economia despenca e os clientes começam a ficar mesquinhos. Da noite para o dia, os homens passam a ser mais espertos com seu dinheiro – e uma nova leva de lindas imigrantes está disposta a fazer sexo oral por 300 dólares. O filme quase se rende ao slut-shaming, tentando diferenciar striptease de prostituição enquanto apresenta uma mudança nos negócios, no qual as mulheres vão acabar levando os homens a casas chiques e hotéis para roubar seus cartões de crédito. Durante a crise, Destiny acaba tendo uma filha, e apesar de Ramona insistir que “a maternidade é uma doença” – culpando a mãe pela vida que leva -, ela também tem uma filha, e as amigas precisam ser criativas para sustentar suas famílias.

Ramona chama isso de “pescar”: como os ricaços não estão mais indo até a boate, são as dançarinas que têm que ir até eles e seduzi-los. Quando conseguem atrair um desavisado (que acha que é seu dia de sorte), elas o levam até a Moves, onde já fizeram um acordo com a boate para dividir o lucro da conta exorbitante. Isso funciona por um tempo, até Ramona decidir que seria mais fácil se elas começassem a adulterar a bebida dos homens com uma receita caseira, uma mistura de MD e cetamina que os deixa apagados.

“As Golpistas” não tem apenas uma, mas duas cenas em que Jennifer Lopez apresenta o plano para suas “irmãs”, sem contar a cena em que Constance Wu o descreve com indignação fingida para a jornalista interpretada por Julia Stiles – e nenhuma delas parece especialmente plausível, muito menos necessária. Os espectadores não precisam acreditar que elas achavam que seria seguro ou que usar entorpecentes era “normal”, mas teria sido bom entender melhor o esquema, que envolve algo como ligar para os clientes regulares e oferecer a eles muita diversão enquanto estouram o limite do cartão de crédito deles.

Na vida real, Foxx e Keo foram longe demais, mas se divertiram horrores enquanto o esquema durou, e suas vítimas eram homens que, por terem dinheiro e status, achavam que a grana era uma boa desculpa para a forma como tratavam as strippers. Claro que isso é simplificar demais as coisas, só que normalmente as predadoras não são as mulheres. Pouquíssimos filmes retratam o efeito e a proporção do mercado do sexo nos EUA, e “As Golpistas” pelo menos mostra a adrenalina de um caso em que foram as mulheres a explorar os homens. É só lembrar da cena em “Psicopata Americano” em que o serial killer Patrick Bateman mata mulheres com uma serra elétrica e pronto! Esse filme passa a ser uma vingança das boas.

É com essa atitude que Scafaria conduz o longa e celebra de maneira perspicaz o excesso materialista. Filmado e editado como um clipe musical, cheio de movimentos de câmera para chamar a atenção e montagens gratuitamente longas, “As Golpistas” é uma subversão radical da percepção da profissão no século passado. Marisa Tomei pode ter aproveitado ao máximo seu papel em “O Lutador”, mas Shirley MacLaine, ao defender suas escolhas de carreira, disse que chegou um momento em que se cansou de interpretar prostitutas, capachos e vítimas – que eram os melhores papéis disponíveis para ela na época. E todas aquelas jovens buscando uma carreira que foram relegadas a fazer pole dance, seminuas e anônimas, em uma série como “Os Sopranos”? Bom, agora elas têm seu próprio “Os Bons Companheiros”.

***

Gostou da nossa tradução? Saiba mais sobre todos os nossos serviços!

Ah! Você pode ler a publicação original em inglês aqui 😉

A LBM em cartaz: “Todo O Dinheiro do Mundo”

Car@s colegas da LBM,

Sorte a de vocês que são caros para nós; se fossem caros para Paul Getty, ele não compraria!

ha ha

Infâmias à parte, a estreia lbmística de hoje é o comentadíssimo “Todo Dinheiro do Mundo”, o novo filme de Ridley Scott distribuído aqui no Brasil pela Diamond Films. Cercado de polêmicas e contratempos, a produção seguiu firme até sua estreia e agradou a muita gente. O ratinho fez essa legendagem e garante: é muita história para contar!

***

Para quem não conhece a figura (histórica), J. Paul Getty foi  possivelmente o homem mais rico do mundo, tendo feito sua fortuna com dinheiro de petróleo. Sua notória sovinice deu cria a crônicas familiares tão chocantes que sua biografia ficou digna de novela cinema. A mais famosa dessas histórias, o sequestro de seu neto preferido pelo qual ele se recusou a pagar o resgate, é o tema principal do filme. Ao assistir o filme pela primeira vez, achei tudo muito hiperbólico e inverossímil, ao que Johnny me alertou: a realidade havia sido ainda pior. Um rápido fact-checking mudou totalmente a minha perspectiva sobre o filme: a vida ganhou da ficção na corrida do absurdo.

A narrativa do filme inclui famosas frases e atitudes do velho avarento, como a entrevista que ele cedeu após a divulgação do sequestro do seu neto. Um jornalista lhe perguntou se ele pagaria o resgate pedido pelos sequestradores, ao que ele respondeu que tinha 14 netos e, se pagasse um resgate, logo estaria pagando 14. O filme dá a entender que o momento era bom para o mercado petroleiro e que, nessa época precisamente, Getty estava ganhando mais dinheiro do que nunca. O que fatos históricos confirmam, no entanto, é ainda mais chocante: o valor pedido pelos criminosos da Mafia para libertar seu neto equivalia nessa época ao que o empresário estava ganhando em apenas um dia com seus rendimentos! Para contar mais fatos, teríamos que dar spoilers do filme, então nos absteremos. Quem quiser saber mais sobre as relações da obra com a história real, pode ler esta matéria da Vanity Vair (em inglês).

As aparências certamente enganam.

Passando da realidade ao longa, o inacreditável também aconteceu. O papel de J. Paul Getty havia sido escrito para o ator Kevin Spacey, que gravou o filme inteiro como protagonista. Mas não era o Christopher Plummer no gif ali em cima? SIM! Com o filme já pronto, Spacey foi acusado publicamente de assédio sexual por várias pessoas, culpa que ele não negou. Assim sendo, os produtores do filme decidiram simplesmente riscar o ator do filme e regravar todas as cenas dele com Plummer em seu lugar, facilitando a vida dos cinéfilos que não precisaram sabotar filme de ator pedófilo. A LBM, no entanto, recebeu os screeners poucos dias antes do escândalo e pudemos ver o filme original Imagem relacionada Ele já foi devidamente deletado de todos os lugares, mas não pudemos deixar de fazer essa inveja nas inimigues.

Yuck.

Essa reviravolta foi complicada para a nossa equipe, que teve que lidar com materiais não finalizados. Foram muitas mudanças e refações nas legendas, trabalhamos com versões parcialmente sem áudio; parecia mais um trabalho de produtora do que de distribuidora. As cenas regravadas, porém, ficaram impecáveis e a crítica elogiou muito o trabalho de Plummer, que ganhou indicações de melhor ator coadjuvante para as principais premiações da temporada. Michelle Williams também roubou a cena no papel da mãe do garoto sequestrado. Já Mark Wahlberg dividiu opiniões, como você pode ver na crítica do What The Flick?!, que também apresenta o trailer:

Encerramos o post com o depoimento emocional do tradutor principal do filme, gerente de projetos e super-herói Johnny, que mais do que ninguém tem a falar sobre essa personalidade:

J. Paul Getty construiu sua vida para a posteridade, afinal o bilionário tinha uma obsessão com a história, a do mundo e a própria. Os livros que publicou, que incluem o título “How to be Rich” e uma autobiografia, são prova disso. A ode ao passado o levou a criar uma cópia idêntica da Vila Adriana de Tivoli, Itália, em Los Angeles. Como um Tio Patinhas que acumula obras de arte em mansões em vez de moedas de ouro em cofres, Getty buscava preencher um vazio que arte nenhuma é capaz.”

***

Voltamos semana que vem com mais uma estreia incrível!