Caros e caras,
No mês de junho, quando é celebrado o orgulho LGBTQ+, tivemos o prazer e a honra de receber um convidado especial para uma live no nosso Insta. Jairo Sarfati recentemente defendeu sua tese de mestrado sobre a legendagem da série RuPaul’s Drag Race (RPDR) feita por fãs, um material considerado sensível, e contou pra gente alguns pontos importantes dessa pesquisa.
Então, agora, convido a todos a deixarem o mimimi na porta e entrarem nesse universo delicado, porém esclarecedor, que é traduzir materiais sensíveis, retomando os destaques da nossa live. Com a visibilidade cada vez maior das lutas sociais, é nossa obrigação entender e aplicar esse conhecimento e respeito ao nosso ofício.
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O que são materiais sensíveis?
Como nos explicou Jairo, a sensibilidade textual é um conceito historicamente criado e aplicado aos textos sagrados. Traduzir textos religiosos significa afetar crenças, valores e tradições de uma sociedade, com impacto direto na sua cultura e ideologia. Hoje, com a ascensão das lutas sociais de grupos minoritários, entendemos que essa mesma noção de sensibilidade se estende a materiais que trazem tópicos que podem afetar como esses grupos são percebidos.
É interessante notar que a sensibilidade do material não é intrínseca a ele e tem correlação direta com o público que o recebe. Um bom exemplo está na análise da Declaração de Pequim, cuja tradução foi estudada na tese de mestrado da Ana Luisa Treichel como material sensível. Ela diz que “a Declaração de Pequim, ao tratar da promoção e defesa dos direitos das mulheres, acaba tocando em um tópico sensível para muitas nações: a posição da mulher na sociedade, o reconhecimento de seus direitos, a necessidade de sua proteção contra a violência e a crença, majoritariamente fundamentada na religião, de que mulheres são inferiores aos homens e, portanto, devem ser submissas a eles. Ao defender a igualdade entre os sexos, a Declaração de Pequim está inevitavelmente entrando em choque com essa crença. É justamente nesse ponto que reside a sensibilidade desse texto, pois ele mobiliza as crenças individuais” (pg 44).
Assim, em nações onde os direitos das mulheres é bem estabelecido, a sensibilidade do texto é menor. Já onde a defesa da igualdade é tabu, a sensibilidade do texto é altíssima.
Por que RPDR é considerado um material sensível?
RuPaul’s Drag Race é um reality show de competição estadunidense, em que drag queens competem pelo título de Next Drag Superstar (Próxima Superestrela Drag). Durante algumas semanas, elas demonstram habilidades diversas, como canto, dança, comédia e costura, lideradas por RuPaul, a drag queen mais rica, famosa e influente da atualidade.
A percepção de que RPDR era um material sensível veio para Jairo durante o desenvolvimento da sua pesquisa. Ao analisar as unidades línguísticas, ele percebeu que um grande cuidado era necessário para traduzir o conteúdo sem ferir o movimento LGBTQ+. Esse cuidado é especialmente importante pois o programa é hoje considerado mainstream, tendo sido abraçado com devoção por diversas audiências além da comunidade LGBTQ+.
Um exemplo disso foi a escolha dos pronomes da legendagem. Quem assiste RPDR sabe que os episódios intercalam as aparições dos participantes em drag e sem drag. Na temporada estudada, Jairo identificou que os pronomes masculinos eram usados para as aparições sem drag, e os femininos para as aparições em drag. No entanto, havendo uma participante trans, o pronome feminino era empregado todas as vezes. Ponto pros fãs!
Por outro lado, a legendagem da primeira temporada da série na Netflix, na época do lançamento, traduzia “drag” como “travesti”, o que é uma grande bola fora. Tamanha é a confusão com os termos, que Jairo dedicou uma seção inteira da sua tese a definir termos como “drag”, “travesti” e “trans”. Felizmente, a Netflix revisa a tradução de seu conteúdo a cada 6 meses com base nas críticas dos fãs, e hoje a tradução é feita com muito mais cuidado. Ponto pra Netflix!
Como garantir que a tradução de um material sensível está adequada?
E agora? Héteros podem traduzir conteúdo LGBTQ+? Pessoas brancas podem traduzir conteúdo sobre pessoas não-brancas? Homens podem traduzir conteúdo feminista?
Jairo nos garantiu que tradução e legendagem podem sim ser feitas por pessoas que não integram uma determinada luta, porém todo cuidado é pouco. Muita pesquisa se faz necessária, e é imprescindível procurar deixar pré-concepções de lado, para que isso não afete o julgamento em relação à linguagem.
Sempre que possível, contar com o auxílio de alguém de dentro da luta é o melhor caminho. A consultoria de alguém que entende do movimento vai legitimar as escolhas e garantir não somente um texto respeitoso em relação à comunidade, mas também um que cumpra a função de levar para a sociedade em geral a percepção correta do grupo retratado.
A LBM fornece consultoria para materiais sensíveis através do serviço de leitura sensível. A leitura sensível é um trabalho de análise textual com o objetivo de identificar inadequações em um texto original ou sua tradução do ponto de vista da representação de um grupo. Ela pode e deve ser feita em materiais que tratam de minorias étnicas e raciais, questões de gênero, da comunidade LGBTQ+, infância, entre outros, sempre em parceria com profissionais dentro desse lugar de fala.
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Em breve, a tese do Jairo estará disponível no repositório da UFC! Obrigada por dividir com a gente um caminho melhor e mais empático de exercer nossa profissão 🙂
Nossa, muito bom!! Já fiz um curso de tradução para legendagem e tenho vontade de entrar no mercado, e é muito bom estarmos atentos para questões importantes como esta. Parabéns pelo texto!
Muito obrigada, Marília! Que bom que o texto ajudou 🙂