Caríssim@s leitor@s,
O primeiro guest post deste ano é mais do que especial. Depois de um bom tempo de espera, enfim recebemos em nosso blog a tradutora de cinema Marina Fragano Baird, vulga minha tia Marina, para um relato de coração sobre a tradução para cinema através das décadas.
Duas dicas bacanas que darei totalmente de graça para vocês. A primeira é: o texto a seguir discorre longamente sobre a moviola e a pietagem. Então, se ainda não leram o post inaugural deste blog especial sobre a moviola, cliquem aqui e leiam agora para entender melhor sobre a máquina e seu funcionamento. Ele foi repostado semana passada com nova introdução e arte. A segunda dica? Só aproveitem!
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Olá, pessoal! Depois de meses ensaiando para escrever no blog do ratinho, aqui estou.
Pois é, a vida de tradutor de cinema é assim, corrida, cheia de imprevistos. Fica difícil se programar. E, mesmo tentando se programar, quando seu corpo e sua mente resolvem por você que é hora de parar, descansar, fazer aquela viagem revigorante, você corre o risco de deixar de fazer aquele filme que você tanto queria traduzir! Mas você volta renovada para novos desafios. Relaxada e com mais experiências e conhecimento para usar nas suas traduções.
É, acho que é uma profissão na qual as férias proporcionam um descanso necessário, claro, mas também reforçam o estoque de conhecimentos a serem aproveitados no seu ofício. Pelo menos, para mim, é assim desde a década de 70. Por mais complexo que fosse traduzir um filme no início, antes mesmo da existência da máquina de escrever elétrica, e marcar manualmente (que mais tarde começou a se chamar também “pietar”) na moviola a entrada e saída de cada legenda para o laboratório saber onde colocar cada uma delas, esse foi sempre um trabalho estimulante.
Sem contar que os roteiros não eram bem elaborados como nas últimas décadas, e era preciso “levantar” muitas palavras e frases na moviola (tarefa difícil, pois sendo ela manual, era difícil dar a velocidade precisa na fala), ou então “levantar” o que faltava na cabine onde o tradutor assistia ao filme. E, quando queríamos voltar atrás no filme para rever uma cena ou ouvir novamente um diálogo, era preciso pedir para o operador parar o filme, voltar atrás manualmente até um ponto que provavelmente seria o ideal, montar novamente e religar a máquina. E lá se iam muitos e muitos minutos, sem contar o risco de ter que ver mais uma vez!
Somado a isso, na época da ditadura, por exemplo, corríamos o risco de ter que marcar (pietar) o filme três ou quatro vezes, pois nossos austeros censores abominavam, por exemplo, o uso da palavra “droga” usada como tradução de “damn” ou “shit” (“merda” nem por sonho), pois podia remeter a “drogas” (“drugs”), e cortavam a cena inteira, o que obrigava a remarcar o rolo a partir daquele corte.
“Calígula”, por exemplo, eu tive que marcar quatro vezes! A marcação, ou pietagem, consistia em anotar o número (que aparecia no marcador em pés da moviola) no início e no fim de cada legenda. Essa marcação servia também para o tradutor saber qual deveria ser o tamanho da legenda para que houvesse tempo de leitura da mesma.
Algumas décadas se passaram, passamos da máquina de escrever manual, à elétrica, e depois ao computador. Os filmes passaram há uns três ou quatro anos, a ser todos digitais. Os filmes que eram vistos em cabines, passaram a ser entregues ao tradutor em VHS (é só dar um Google para saber que bicho é esse!), depois DVD, blu-ray, pendrives. Hoje em dia, ou você recebe o link para baixar o filme, ou então você recebe um aviso de que determinado filme está disponível para você. E então, você já recebe a imagem, o template com as legendas na língua original e um template em branco para fazer a tradução, já indicando de que tamanho deve ser a legenda, que tende atualmente a ser mais curta. (Ou seja, um trabalhinho mental a mais, pois você tem que dar ideia do que está sendo dito com menos palavras!)
Os roteiros agora costumam estar completos e, por vezes, com explicação de determinadas palavras ou expressões. E a imensa quantidade de dicionários digitais e sites de pesquisa nos permitiu aposentar os vários dicionários, que iam sendo substituídos por novos, ou por terem se tornado obsoletos ou por já terem perdido várias folhas por excesso de uso. Para nos adaptarmos às novas tecnologias, de vez em quando temos que fazer alguns treinamentos. Às vezes, confesso, dá preguiça de ter que aprender algo novo, mas depois de dominada a nova técnica, a sensação é de satisfação, e normalmente o trabalho torna-se um pouco mais ágil.
Foram tantas e tantas mudanças através das décadas, mas o que não muda é o aprendizado a cada filme traduzido. Não só em termos de aprender novos vocábulos e expressões, mas de viver diferentes experiências com cada personagem, formar opiniões a respeito de determinados fatos e descobrir suas opiniões com relação a certos temas, antes desconhecidas até por você. E conseguir transmitir para os espectadores a ideia de cada frase, já que geralmente não existe um tempo de leitura suficiente para traduzir tudo que é dito, dá uma sensação de missão cumprida.
Inventar trocadilhos onde a tradução literal tiraria a graça de determinada legenda é outro desafio. E algumas traduções de termos ou expressões que fizemos e não nos satisfizeram nos perseguem no banho, na refeição, no supermercado, até que encontremos uma que nos convença. Além das pesquisas habituais, às vezes temos que ler livros nos quais certos filmes se baseiam, para que sejam mantidos os nomes dos personagens, locais, determinadas expressões características, etc. Foi assim, por exemplo, com os oito filmes “Harry Potter”. Para traduzi-los, li os sete livros, mantendo assim os nomes dos personagens, das casas, dos feitiços, dos lugares, etc., para não frustrar os fãs, muitos dos quais sabiam cada nome contido no livro de cor. O mesmo aconteceu com outras franquias como “O Senhor dos Anéis”, “O Hobbit”, e os filmes de super-heróis: “Batman”, “Mulher-Maravilha”, “Esquadrão Suicida”, “Liga da Justiça”, entre tantos outros. Os fãs dos quadrinhos não perdoam um mínimo deslize! Assim como os das franquias para adolescentes, como “Divergente”, “Crepúsculo”, etc., além de filmes baseados em livros famosos, como “O Pequeno Príncipe”, “A Cabana”, “O Nome da Rosa”.
E assim, depois de mais de 1.500 filmes traduzidos, continuam iguais o entusiasmo pela profissão, pelo aprendizado a cada filme, a sensação de satisfação ao final de cada trabalho concluído, principalmente os que requerem maior esforço, e a alegria ao ver reconhecido o valor do próprio trabalho.
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Marina Fragano Baird formou-se em Letras na USP e começou a traduzir para cinema aos 18 anos. Com mais de 40 anos de carreira, tem uma lista invejável de mais de 1500 filmes traduzidos. Viajou boa parte do mundo atrás de renovação mental, espiritual, corporal e, sobretudo, cultural para seguir traduzindo. Pioneira na pietagem de filmes 35 mm, aprendeu sobre marcação na antiga Labocine do Rio de Janeiro e seguiu marcando filmes até que todos os cinemas brasileiros estivessem digitalizados. Uma referência na tradução para cinema, com a qualidade que estabeleceu padrões no mercado, e ícone para fãs brasileiros das maiores franquias culturais do planeta.