Tira esse tira daí: das escolhas de tradução

Recentemente alguém curioso sobre a tradução de legendas surgiu no meu Facebook e, entre mil outras perguntas, incluindo “Quem é Herbert Richers?” (Google?), perguntou-me sobre o uso da palavra “tira” em legendas, comumente usada para traduzir “cop” do inglês, uma gíria para policial. Seu principal argumento contra o uso do termo era que ninguém falava daquele jeito e que ele só via aquilo em legendas/dublagens. Justo.

Preparem-se para uma seleção de memes de tiras ã-mei-zin.

Realmente, pelo menos aqui para os meus lados paulistanos, não se usa muito “tira” para se referir a um policial informalmente/pejorativamente. No entanto, como a maioria das pessoas, meu círculo de relações é muito restrito para afirmar que ninguém fala dessa forma aqui em São Paulo; há muitos meios onde eu não posso nem imaginar como as pessoas se expressam, embora esteja sempre muito atenta aos diferentes falares.

Instintivamente, porém, concordo que “tira” possivelmente é uma expressão algo antiquada para os dias de hoje. “Coxinha”, “meganha”, “os homi” e “cana” (como apontou um leitor do blog nos comentários ano passado) são só alguns exemplos de muitas outras gírias para polícia que estão em circulação por aí, então por que a insistência no bom (ou mau?) e velho tira?

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O objetivo deste post é oferecer algumas reflexões que podem ser caminhos para responder a pergunta do meu amigo curioso. Então, vamos lá:

1) Uma convenção

Como confidenciado por meu amigo curioso, ele mesmo aprendeu o termo “tira” lendo legendas/ ouvindo dublagens. Isso é um indicador de que já é uma convenção de legendadores escolher esse termo. Mais do que isso, podemos até afirmar que é uma convenção cinematográfica, já que títulos de filmes (que NÃO são escolhidos pelo tradutor, e sim pela distribuidora do filme) que trazem “cop” no original também costumam ter “tira” no meio. “Tira” também é uma opção comum no processo inverso. Explico-me: sendo já uma convenção cinematográfica, virou também um clichê, sendo muitas vezes usada essa palavra no título para torná-lo mais comercial, sem que “cop” esteja presente. Exemplo disso é o filme “Os Tiras de Los Angeles”, cujo título original é “L.A. Takedown”. Sacou?

Veja só alguns exemplos de títulos com os homi tira:

  

Parte-se do pressuposto que um dia “tira” foi um termo assim mais… in. Mas podemos considerar também que, no audiovisual brasileiro, tira virou o termo que se refere especificamente ao policial americano.

2) Uma estratégia

A tal convenção de que falamos acima não tem benefícios somente para o tradutor, que não precisa se aporrinhar muito para achar uma tradução adequada. É possível dizer que, em determinados casos, a escolha de certos termos visa também facilitar a vida do leitor das legendas. A palavra “cop” em inglês se refere à pessoa do policial, porém é uma gíria. Diferentemente de “tira”, essa gíria se mantém totalmente atual. “Tira” em português, embora desatualizada para os mais jovens, tem em si exatamente a mesma qualidade que “cop” no inglês: é um termo para se referir ao policial informalmente, que pode ter carga positiva ou negativa dependendo de quem fala e é um termo que poderia sair da boca de várias classes de cidadão. Gírias mais atualizadas parecem ter conotação seriamente pejorativa e, em muitos casos, poderiam ser más opções. Traduzir simplesmente por “policial” é uma opção neutra, mas menos fiel se considerarmos que a personagem está se expressando com uma gíria, e não uma palavra neutra. Dependendo do caso, também pode não ser a melhor opção. Usar “tira” é uma estratégia de tradução que, como qualquer estratégia, tem seu lado bom e ruim. O ruim já sabemos bem, na época de Matusalém já não se falava mais assim. Mas o bom é bom mesmo: a preservação de um componente cultural presente na escolha da linguagem usada que, nos filmes, pode ser crucial.

Cops be like…

Outro bom exemplo é “Que diabos”, algo ainda muito comum nas legendas para traduzir “What the hell”. Não é aquela coisa mais natural de sair da boca de alguém que você conhece, mas passa bem a ideia. Nesse caso, outras estratégias poderiam incluir omissão total (ex. “What the hell are you doing?” vira “O que você está fazendo?” simplesmente), um tanto infiel e sem graça, ou apelar para uma coisa mais vulgar, como palavrões, o que não é nada interessante (nem permitido) na esmagadora maioria das vezes. O que você preferiria?

3) Uma preocupação

 O uso de gírias é algo delicado na tradução, em especial na legendagem, por dois motivos. O primeiro é que gírias são muito regionais e representam muito bem uma parcela muito pequena de pessoas. Na compreensão do tradutor, uma gíria pode traduzir com perfeição e humor o que está sendo dito em outra língua, mas, se não for algo consagrado nacionalmente, não há garantias de que aquilo vá cair bem para todos os públicos. A legenda dura segundos e é o dever do legendador procurar não dificultar o trabalho do leitor sempre que possível. Na tradução de legendas para cinema, que é o ramo da LBM, é pior ainda, já que não é possível nem voltar um pouquinho para tentar entender e refletir sobre o que uma palavra possa significar. O segundo motivo é que gírias também são passageiras e podem ser maravilhosas agora e totalmente esquecidas mês que vem. Mais uma vez, o uso de gírias não consagradas, aquelas que resistiram ao tempo, pode ser problemático. O tradutor deve estar atento ao fato de que a legenda deve estar o mais atual possível após alguns anos da sua confecção.

Não poderíamos deixar as rosquinhas de lado.

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O uso de gírias consagradas, porém desatualizadas, pode ser tema de discussão no mundo da tradução. A convenção, a estratégia e a preocupação podem oferecer bons argumentos, mas são também fruto de conservadorismo no nosso ramo. Com isso, quero dizer que não acho reprovável o uso de gírias atuais e admiro tradutores que correm riscos para tornar seu trabalho mais interessante e rico, contanto que estejam pensando sempre no público leitor, de uma forma ou de outra. É preciso que se siga uma linha de raciocínio ao escolher um termo, visando sempre uma reação do leitor, que nem sempre precisa ser a mais confortável para ele. E, mais importante, TUDO depende do contexto. “Tira” não é a mesma palavra em cada diálogo em que é dita, pois cada contexto é um. Assim, cada contexto aceita diferentes possibilidades de tradução.

E agora, caro amigo curioso, tira ou não tira?

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Tira: “Tem drogas ou álcool aí?” Motorista: “Não, valeu. Já estou carregado.”