Heist Films Entertainment

Fim de semana retrasado, eu me encontrava de folga passeando em Curitiba. Não será grande surpresa para o meu leitor se eu disser que resolvi visitar o Museu Oscar Niemeyer, o MON. O “Olho”, como é comumente chamado em referência ao formato do seu incrível vão livre, é um destino turístico popular não somente por sua óbvia atratividade arquitetônica, mas também pela excelência de suas exposições que, segundo descrição do próprio museu, colocou o MON no mapa dos museus brasileiros importantes, que antes de limitava à rota SP-RJ. Para minha grata surpresa, ao perambular pelo museu visitando seus espaços e exposições, percebi que ele se propunha a ser casa de todas as artes visuais e que o cinema não era exceção. Foi assim que conheci a Heist Films Entertainment, uma produtora de filmes nada convencional.

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O Olho fica lá no alto. Para chegar até o Olho propriamente dito (que abriga uma deslumbrante exposição sobre João Turín), é preciso atravessar um corredor cujo teto não se enxerga, ainda que seja todo iluminado.  Ele dá numa pequena sala, na qual encontrei um gigantesco pôster de um filme intitulado originalmente “Paranormal”, porém com título em português “Garota Diabólica”. Nele, uma moça se sentava à beirada de uma cama com o olhar tresloucado que só os possuídos têm, punhos medonhamente retorcidos. “Até aí”, pensei, “mais um clichê e desinteressante filme de terror”. Porém, à direita do pôster, no canto inferior da salinha, uma velha televisão 14″ ligada, sem nenhum sinal. Olhando o pôster mais de perto, entre as clássicas folhinhas de louro que anunciam a participação dos filmes em festivais importantes, em vez de Cannes ou Sundance, lia-se Hoax Festival. Hum.

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Gustavo Von Ha tem sido apontado por muitos críticos como um dos mais inventivos artistas contemporâneos por aqui. É ele o criador da Heist Films Entertainment, uma empresa fictícia dedicada a produzir e distribuir trailers de filmes que jamais serão feitos. Não, “Garota Diabólica” não é um filme de verdade, embora tivesse tudo para ser.  Na pequena sala introdutória do MON citada acima e em mais três pequenos espaços verticalizados a caminho do Olho (a parte amarela que sustenta o Olho), estão em exibição os mais variados objetos sobre quatro trailers de filmes que não existem. Pôsteres, fotos, vestimentas, perucas, roteiros em papel (quem saberá se realmente há alguma coisa escrita neles?) e os próprios trailers se juntam para uma celebração improvável do trailer como obra de arte, absoluto em si mesmo. A fragmentação narrativa proporcionada pelo trailer, que normalmente serviria para motivar o espectador a assistir a obra completa, passa a ser um gênero narrativo completo, algo de muito pós-moderno. Saber que não há nada além do próprio trailer para ser visto causa um estranhamento muito grande, uma reação muito intensa que se contrasta com a simplicidade da exposição. A exposição é open-ended; um convite à imaginação para montar sua própria narrativa final. Muito tentador.

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É difícil ignorar, no entanto, que os quatro trailers de filmes em exibição, a saber “Garota Diabólica (Paranormal),  “Hollywood em Chamas 1” (Gasoline 1), “Hollywood em Chamas 2” (Gasoline 2) e “A Busca do Amor” (TokyoShow), fazem alusão aos grandes clichês dos gêneros cinematográficos (a começar pela tradução de seus títulos para o português). Não seria difícil imaginar desenvolvimentos e finais para tais filmes, mas talvez não fossem dos mais originais. Mas tudo isso não parece ser à toa. Segundo o encarte da exposição, “[Todos os trailers] possuem peças publicitárias, atores e atrizes profissionais, páginas na internet e nas redes sociais, DVDs distribuídos em bancas de filmes piratas e cartazes – em suma, tudo o que um filme real deve ter por convenção”. Mas que filme real deve ter tudo isso por convenção? Certamente, um filme que visa alcançar grandes públicos, vender bem. E dinheiro é a alma do negócio, não é? Ao produzir trailers que “emulam uma realidade que nunca se concretiza em sua totalidade”, o autor está, ainda que em segundo plano, mostrando a própria desvalorização do filme como objeto final do público e, em oposição, escancarando a ênfase dada ao processo de venda do filme antes mesmo que ele exista. A realidade ou concretização aqui não são importantes, mas sim a fantasia. Fantasia criada em torno da criação cinematográfica, das pessoas nela envolvidas, nos objetos utilizados, tudo elevado a um status de proporção descabida. Por quê? Dinheiro. No mundo em que vivemos, a “realidade” do filme, sua mensagem, sua essência, é pouco importante perto do quanto se pode lucrar com ele. Franquias de filmes, bem simuladas por Hollywood em Chamas 1 e 2, talvez sejam o maior exemplo disso. Filmes muitas vezes sem sentido já têm seus nomes e informações vendidos e marketados antes mesmo de existirem, pois o público parece não se cansar. Será que não nos cansamos mesmo ou somos eternamente levados a verificar algo que foi tão incessantemente martelado em nossas cabeças? Ah, a expectativa.

“Heist Films Entertainment” (que é, a propósito, o nome da exposição) pode ser um mágico convite ao universo de possibilidades que o cinema nos proporciona ou um não tão mágico convite ao pobre universo da mesmice a que ele nos condena. Por ambos os motivos, imperdível.

http://www.heistfilms.org/

PS: fiquem, então, com a cena de Alessandra Negrini segurando uma peruca de forma irresistível no trailer de “Em Busca do Amor” (TokyoShow). A peruca, objeto tornado praticamente mítico, pode ser encontrada na exposição (ah, vá?).

tokyoshow

Post Inaugural: Especial Moviola

Amigões e amigonas da LBM,

Por quase quatro anos agora, damos as boas-vindas a vocês no nosso blog. Hoje, trazemos o #tbt mais emocional possível: o nosso post inaugural.

Em 2014, ele contou a vocês um pouco da nossa história pessoal como empresa familiar e do nosso trabalho com cinema. Falou muito e sobretudo da moviola, nosso querido equipamento de pietagem. Em 2018, vemos que tanto mudou: nossa moviola hoje mora na Cinemateca de São Paulo, após doação feita pelo sócio-pai; meu avô não está mais entre nós; e os cinemas no Brasil estão quase 100% digitalizados, bem como os processos de legendagem. E, é claro, ninguém mais fala em pietagem, exceto figurões das antigas, como nós (descubra mais sobre nossos serviços atuais).

Esse revival tem por objetivo relembrar e comemorar a evolução do blog, da nossa empresa e da indústria como um todo. Serve também de esquenta para um guest post mais do que especial de alguém que manja muito de moviola e pietagem e vai dividir sua história conosco semana que vem.

Entramos no túnel do tempo.

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Amiguinhos e amiguinhas da LBM, bem-vindos ao nosso blog!

Neste post inaugural, queremos primeiramente agradecer a sua disposição em dispor de alguns instantes para nos conhecer melhor. A Little Brown Mouse é uma nova marca, mas não é de hoje que fazemos o nosso trabalho. Nossa empresa é composta por esta que vos fala, Ligia, e seu digníssimo pai, Claudio, a quem carinhosamente me refiro como sócio-pai.

Tudo se iniciou quando o sócio-pai (que não era nem sócio, nem pai) começou a fazer bicos de tradução com empresas da área cinematográfica para garantir o sunday do Joakin’s nosso de cada dia, isso em torno de 1974. Então, você se pergunta: “Onde raios esse playboy foi arrumar um trampo desses?”. Foi tudo facilitado pelo meu avô, Adone Fragano, que foi diretor da Fama Filmes e da  Paris Filmes e até hoje mantém uma empresa de produção e distribuição de filmes aqui no Brasil. O sócio-pai se enveredou por outros caminhos profissionais no começo da sua vida adulta, mas não se realizou, retornando assim à tradução e pietagem de filmes em 1990 (quando já era pai, mas não sócio) e transformando o bico em sua bem-sucedida carreira que adentra os dias atuais.

Como o fruto não cai muito longe do pé, eu já no colegial comecei a fazer trabalhinhos de tradução com o sócio-pai, que pacientemente me explicava que sand dollar não era um dólar de areia (sabe aquelas bolachas do mar? então) e outras coisas do tipo. Isso me levou a estudar Letras e me profissionalizar no caminho das línguas. Alguns anos depois, nos associamos com a criação de uma empresa, e esse é o momento em que gosto de pensar que o sócio-pai atinge seu ponto alto pessoal e profissional, tornando-se simultaneamente meu pai e sócio. Bem, cá estamos. Talvez sejamos familiares pois vez ou outra você viu nossos nomes assinados ao fim da exibição de um filme no cinema, talvez nunca tenha prestado atenção. Preste atenção a partir de agora, pois a assinatura virá no nome de Little Brown Mouse!

Bem, agora você já nos conhece melhor. Mas, espere aí. Talvez ao ler a breve introdução acima você tenha empacado na palavra “pietagem”. Esse substantivo bacana designa o trabalho feito para definir o espaço/tempo que se tem para escrever cada legenda. Se você é fuçado e já usou algum software de tradução de legendas, deve estar pensando: “Mas não é só apertar uma tecla para parar quando o caboclo começa a falar e outra quando ele termina, escrever a legenda na caixa de texto e o computador faz o resto?”. Bem, não é tão simples assim. Para a legendagem de mídias como TV e DVD, os softwares funcionam bem dessa forma mesmo. Processo semelhante também existe para cinema quando se trata dos que já estão digitalizados, cujo produto final exibido no projetor chamamos de DCP. Porém, nem todos os cinemas (na verdade, talvez a maioria deles) são digitalizados. Muitos deles ainda trabalham com as cópias de 35mm, que são aqueles rolos de filmes clássicos e pesadões que muitas vezes são usados como símbolo do cinema. Para definir o espaço/tempo das legendas nessas condições, é preciso fazer a pietagem numa máquina chamada MOVIOLA (foto). E, depois de muitos rodeios, isso nos traz ao verdadeiro sentido do post inaugural, que é justamente contar para vocês sobre a querida moviola que temos conosco.

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Edit 2018: Saudades, moviola!

Afinal, o que é uma moviola e como ela funciona? Um pouco de história antes. Voltando a 1974, quando o sócio-pai começava a fazer seus trampos como tradutor e marcador e quando nenhum cinema era digital, fez-se necessária a existência de uma moviola com a qual pudesse trabalhar a qualquer momento. Assim, nesse mesmo ano foi encomendada a fabricação de uma moviola exclusiva. Ela foi feita no Rio de Janeiro pela Titra Filmes, empresa de legendagem da época, e foi adaptada a partir de uma enroladeira de filmes. Olhando para a foto da moviola, imagine apenas a mesa com os carretéis. Isso seria uma enroladeira, instrumento usado meramente para rebobinar rolos de filme. Bem, a partir dessa enroladeira, foram adicionadas as seguintes peças: um leitor de som com lâmpada excitadora, uma lâmpada para leitura de imagens, um amplificador, uma caixa de som e um contador de pés. Pronto, estava feita a moviola!

Agora sim, como ela funciona? Como uma imagem vale por mil palavras, vamos assistir ao vídeo com alguns segundos de pietagem (não deixe de notar a elegância do sócio-pai operando a moviola).

A moviola funciona através de um processo fascinante no qual uma lâmpada lê o som do rolo de filme. Sim, uma lâmpada! Ela é chamada de lâmpada excitadora. Assim, o trabalho na moviola é prioritariamente auditivo. Caso haja alguma dúvida que só uma olhadinha na cena pode resolver, há também uma lâmpada normal que ajuda a pessoa marcando o filme a enxergar o que aparece nos minúsculos quadradinhos do rolo que exibem o filme fotograficamente, frame a frame. Uma lupa também pode ajudar nessa hora. Melhor dar uma corridinha no computador e assistir a cena lá, não é mesmo?

Construída em 1974, este ano a moviola completa 40 anos. Vamos encerrar este post agradecendo mais uma vez nossos leitores e desejando que a moviola viva mais 40 anos nos ajudando a realizar pietagens maravilhosamente precisas, para que ninguém tenha que passar pela terrível experiência de assistir filmes com legendas fora de sincronia 😉 Parabéns, moviola!